domingo, novembro 03, 2013

AS CONTAS ORÇAMENTAIS E O ESTADO SEM CONTA

 
 O corte no dinheiro não serve qualquer projecto de reforma do Estado

 
   Após o corte

Depois da longa e atormentada viagem das facadas genocidas sobre a espantada população portuguesa, cada vez mais pobre e cada vez mais refém de uma Europa de volumosos Tratados  incumpridos e contraditórios, as pessoas das classes mínimas encolheram-se nas dívidas, entregaram à finança as casas e os bens que haviam adquirido ao abrigo das promessas de Bruxelas, aliás após a ventania das regras de abate de barcos de pesca, vinhas, fruta não calibrada e luzidia. O mar todo à nossa frente, oceano dos oceanos percorridos pela Nação até aos cinco continentes, e os barcos estilhaçados em troca não se sabe bem do quê, nem marinha mercante, nem apoio aos portos. Muitas plantações foram dizimadas em nome de um futuro cotado e melhor, dinheiro, enfim, na mão dos pobres aceitantes, sobretudo os trabalhadores da agricultu- ra, tesourada e rapidamente desabitada. Era uma espécie de reforma ou um ataque à soberania do país: porque tais medidas só podem ser tomadas caso a a caso, científica e sociologicamente. O corte, assim, assimétrico, assemelha-se a roubo, não favorece nenhuma União. Entre nós, o deserto aumentou, os pobres deixaram o chão, julgando-se ricos, e bem cedo contemplaram as mãos vazias, cada vez mais velhas e de novo vazias.
O dinheiro veio, às pazadas, mas não era para aqueles a quem a gorjeta, na avaliação por baixo das suas culturas, já definhava entre as couves meramente caseiras. E veio o alarme, a emigração, o famoso plano de ajustamento, uma espécie de estratégia para empobrecer o país e fingir que, dessa maneira, algo sobrava a fim de se pagar a dívida soberana. Os soberanos eram os Credores, de súbito agarrados a altos júris, trato de agiotagem global, redes de anotação e mando sem conversa sobre os países mais despojados. Era, e é cada vez mais, uma invenção maquiavélica, lá para os lados da América, enquanto a  Europa, gerida de esguelha, entre resgates manobristas e absurdos, nada fazia de semelhante para olhar mais de perto os triplos AAA, os CCC e o lixo. Um jogo infantil que desertifica os espaços verdes e obriga a vagas de fugas, quer do dinheiro, quer das pessoas.
Mas agora chegou o novo orçamento do Estado (em Portugal), feito pelo governo que tem andado a trabalhar para nós, esvaziando casas e algibeiras, sem conseguir objectivamente pôr ordem no déficit e retornar a um crescimento capaz de reconverter em parte os equilíbrios. Sugerindo haver já uns ténues sinais positivos na economia, vestígios, não sinais, o novo orçamento é mais do mesmo, uma fortuna sem nome obtida por cortes nos salários e nas pensões, mesmo pensões que já foram cortadas e que vão baixar em cerca de 50% do que eram. Não tem sentido, se o que retiram de outros lados mais institucionais não passa de um décimo do outro balúrdio, ou coisa parecida. Isto acontece, em boa medida, porque os Mamutes do dinheiro, desde longe, conquistaram a política e meteram-lhe uma arreata ao posto de pedra em São Bento. E nada disto foi medido a par dos efeitos colaterais: baixa-se uma pensão em mais 10%, depois do IRS e dos outros cortes, mas permite-se que os velhos e novos proprietários de prédios para arrendar possam inventar rendas que sobem sem pudor 500 ou mais por cento, igualando-se aos proventos exteriores do arrendatário. Ninguém tem de pagar os erros dos senhorios, se eles compraram casas a 8% de lucro, às vezes prédios inteiros, e não reconverteram nada disso perante as mudanças estruturais da sociedade, ficando à espera de um governo liberal que os libertasse sem responsabilidade. Os despejos (palavra que diz tudo e se associa a fezes) vão tocar a muitos, as filas já começaram, o desespero também.
Com este orçamento, os sinais ténues de crescimento vão afundar-se de novo e Portas terá de recolher aquele papel primário a que chamou projecto para a Reforma do Estado. Como é que um homem que tantas vezes escreveu com propriedade e oportunidade no Independente, hoje capaz de interessantes trocadilhos com o significado das palavras, boa dicção, cultura apreciável, nos vem entregar um mísero esbocete (também dito guião a propósito de nada) que se propõe ser dedicado à Reforma do Estado. Aquilo talvez sirva para um papel teatral, frases programáticas e ditos curtos como réplica para o futuro. Chega  a  parecer  um  exercício  liceal baseado, sem  verdadeiros capítulos  ou  geometrias de organogramas com leituras interactivas, consolidando conteúdos, funções, objectivos principais. Soltam-se os rouxinóis e uma grande percentagem do que é dito procura consolidar os ditames já assentes ali, afinal andamento do programa orçamental e de um futuro programa do governo. Nenhuma Reforma do Estado se extrai daquele documento. 
José Seguro, da oposição PS, continua a baralhar as palavras e as teimosias, porque um contraditório inteligente, de alternativas coesas a desfazer neoliberalismos duros, lentos, mastigados no baixo serviço da língua e dos contratos e da cultura, poderia abrir apelos, despertar algumas mentes e a pobre taxa de sucesso em que se encontra.

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

para lá do tema, actual, recorrente e cada vez mais dramático é sempre um enorme deleite ler a forma como escreve, meu bom amigo.

Quanto ao tema, em si, ainda ontem, num programa de tv, quando perguntaram a um velho homem sobre os seus medos, ele respondeu: "A política... a política é o que me provoca mais medo."

jawaa disse...


Como diz o Miguel, é um prazer ler esta sua escrita sobre o tema estafado.
Pelo que me toca, acredito no teoria do Matrix.