Lembram-se daquele famoso livro de Bradbury sobre a morte dos livros, levado ao cinema por Truffaut, a história de uma sociedade futura onde os bombeiros não se destinavam propriamente a apagar fogos mas antes, e ao contrário, a procurar o maior número possível de publicaçõess, queimando-as em praça pública com lança chamas. Pragmático, Truffaut narrava esta monstruosidade quotidiana de forma rigorosa e sucinta, como a coisa mais natural deste mundo. Pensamos em «1984», de Orwell, o mundo globalizado na mais vigiada das ditaduras, na qual a «máquina» da repressão era conhecida por Big Brother. Em Bradbury, ou no filme de Truffaut, a realidade repressiva, a castração cultural pela queima inquisitorial dos livros, todos os livros, tocava sobretudo os cidadãos que sabiam os perigos que corriam se lessem um livro, ou se os tivessem em casa. E todos os que os que não se conformassem com tal amarração silenciosa, como sempre acontece, ou se resignavam ou resistiam. E a palavra de ordem (secreta) era resistir. Resistir consistia primeiro em fazer um esforço para esconder muitas obras em casa, frequentemente descobertas pelos bombeiros-polícias e queimadas. Para além disso, muitos cidadãos procuravam um exílio nas montanhas, nas florestas, e aí os intérpretes dessa atitude passeavan de um lado para o outro, decorando os livros, ou dizendo-os em voz alta, ou ensinando-os aos mais novos. Formava-se assim uma biblioteca universal oralizada de geração para geração. A civilização humana, e com toda ela a sua identidade cultural, acabaria por sobreviver contra as mais sofisticadas tecnologias de apagar o seu verdadeiro rosto, apagando-o do conhecimento das pessoas.
Ao lembrar-me deste filme quero afirmar que penso numa situação semelhante relativamente a nós, com ou sem globalização. As editoras florescem por aqui e por ali, em Portugal, e editam toneladas de livros por semena. O que parece positivo. O que parece progressista. Mas quem tem acesso a essas editoras, que prospecção autoral fazem elas nos meios da escrita e do pensamento, sem ligar ao sopro dos poderosos nos ouvidos? Quais são, enfim, os critérios das suas escolhas? Ao falar com um amigo meu desse sector, e perante as minhas próprias queixas quanto aos verdadeiros casos descobertos, que são repelidos pelas editoras, ele disse-me que os livros continuam a ser queimados. O que chega às bancas são ilustres conhecidos, para quem há bastante tráfico de influências, e depois um monte de traduções, de livros da moda, de um outro novo escritor que conseguiu, sabe-se lá como, furar as malhas das fronteiras do Big Brother. «Talvez não seja tanto assim. Tu é do meio e estás pessinista». E ele, sorrindo de soslaio para continuar a marcha, perguntou-me:«Tens livros para publicar?». Respondi que sim, que tinha pelo menos uns seis originais. Com um aceno, este meu amigo lançou-me um repto: «Então tenta, vai lá falar com os chefes livreiros».
Pausa.
Enchi-me de coragem e comecei a percorrer as editoras, algumas dirigidas por pessoas que conheciam a minha obra pictórica, alguns livros didácticos, e muito trabalho de ensaio jornalístico. Esperei um ano pela primeira resposta: que eu escrevia muiro bem, mas o livro não estava ao alcance do público, sendo demasiado ambicioso; outra instituição, dirigida por um amigo meu, devolveu-me o original no dia a seguir ao da entrega, porque não estava dentro do novo plano editorial agora em vigor na Casa, abocanhada em parte pelos espanhóis; um outro director editorial garantiu-me a excelência da obra, embora soubesse de antemão que não venderia maia de cem exmplares do livro.
O país está queimado, florestal e cultruralmente. Os novos livros, de novos autores, têm que ser entendidos como uma prioridade, sem tráfico de influências, porque grande parte deles é muito importante, representam uma porta aberta para um futuro onde os homens dizem livros na floresta. O embuste cresce, sobretudo quando se faz passar gato por livro, da Vinci em dourados ou relevos, luxos caros e nem sequer asiáticos. Qualquer editora que se prese, e que não queira sucumbir ao mercado global, selvagem, redutor, terá de desenvolver actividade prospectiva, por todos os níveis etários com obras inéditas, e terá de reservar anualmente um tecto, uma cota, em ordem à publicação de livros desconhecidos, de autores desconhecidos, jovens ou velhos, que escrevem por vezes obras primas em breve queimadas nas gavetas.
Se percorrermos os circuitos de um livro, desde a sua génese, à sua difícil fecundação no útero dos livreiros, até aos «distribuidores» e revendedores, compreenderemos que as metodoligias do achamento de obras e de tratamento delas está velho e rodeado por pessoas que julgam saber tudo, até de um marketing que continua a gaguejar. Tudo é velho, rotineiro, sem associativismo, carredado de intermediários que ganham mais por unidade do que o criador da obra. Nas livrarias, emergem meia dúzia de últimas peças de um autor, por exemplo, e soçobram bem depressa para a prateleira, pois a nova tonelada de temas paeudo-religiosos e com letras douradas está a chegar.
Os ouvidores da República, de má fama, servem agora para outras coisas bem menores. O Santo Grall é com eles: o que se vende e o que não se vende
4 comentários:
Tem razão, cada vez há mais editoras e a quantidade de obras que saem por mês não é proporcional à qualidade das mesmas. Mas ainda pior é editar um livro e não ver quaisquer royalties pagos pela editora ao autor.
Fiquei com as palavras em cinza!!!
Mas que grande trincada!!!
As verdades são para se dizer...é mesmo assim!
O seu texto veio trazer-me à memória os meus próprios problemas: editoras e oportunidades.
De facto, a sua leitura desta problemática dos livros( não esqueci e não esquecerei tantas noites de cristal),é tão clarividente!
Eu próprio tenho experiência do que transcorre do seu texto.
Mas há no entanto uma ressalva a fazer:
ainda há gente séria que se não deixa arrastar nesse oceano de influências( tãom português?).
Falo da editora que publicou os meus dois primeiros romances" O "Fechar do Círculo e Cova de Lobo"", editados pela Replicação e que felizmente venderam alguns milhares de exemplares que me foram pagos até ao centimo.
O mesmo não posso dizer de quem em 2002 me publicou " Soltam-se As Amarras, que até à data me não prestou contas,ignorando com incólume descaramente o que significa a palavra de um contracto assinado, muito embora eu saiba que practicamente toda a edição está vendida.
A "Prefácio" é editora a proscrever.
Depois surge-me a reflexão mais do que justa, que todavia talvez não aceitasse nela me envolver!!!:
Quem me dera ser protegido pelos Lobies que protegem tanta má literatura e a publicam!!!
Um abraço.
Pode ser que ainda um dia nos encontremoos pessoalmente para falar destas e de outras coisas, talvez até da injusta guerra colonial que nos reduziu a nada, a um terrível vazio personalizado.
Enviar um comentário