pintura a de Rocha de Sousa: «Acto Irreal» sobre a guerra colonial, salvamento de uma criança, indeterminação dinâmica da corrida, um ser arrancado aos tiros
Ao ver na televisão, quase todos os dias, mas em fragmentos repetitivos e sem geografia, as guerras que incendeiam o mundo na actualidade, lembro-me de uma outra guerra, praticamente já esquecida, para a qual fui mobilizado de súbito, compelido pelas leis que nesse tempo determinavam a obediência obrigatória, e mesmo cega, às determinações do serviço militar. Depois de ter regressado dessa comissão num mundo de assombro, que nos rasgava e pele com os espinhos da selva e deslumbrava perante os crepúsculos cósmicos, as chuvas imensas, o murmúrio dos insectos ou pássaros deslizantes.
Nas palavras de Salazar, essa guerra - «todos para Angola e em força» - consistia no direito supremo de defender e salvar a nossa Pátria, multiracial e pluricontinental. Projecto ao contrário do que dizia o «terceiro mundo» sentado nas poltronas da ONU. Projecto que já tinha exemplos mansos, mas enganadores, e alcançava a sua errática grandeza nos ano 60 com a «capitulação» de deGaulle na frente já muio larga e duradoura que fervilhara na Argélia. Franz Fanon, defensor dos movimentos de libertação nacional e estudioso dos fenómenos étnicos ou político-militares, conhecia perfeitamente como tudo se gerara depois da II Guerra Mundial, as raizes, os apoios, os níveis e as diferenças tribais entre fronteiras de conveniência. Mas o próprio Fanon murmurava, de forma cauelosa e pertinente, os efeitos da repentina transição de povos situados no limiar da história para o centro civuilizacional do século XX.
Não vou abordar esta matéria, dada sua complexidade e os estudos comparados que é preciso desenvolver. Tudo isto veio apenas a propósito de um quadro que evoca a guerra de Angola, entre outros que produzi, e da estranheza que sempre me acompanha quanto à surdez que, entre nós, desabou sobre esses acontecimentos. Não houve um rasgo nacional, uma campanha literária e artística, debates de estudo sobre a natureza dos respectivos fenómenos e sua projecção no futuro. Alguém costuma dizer que o país tinha vergonha, que os mortos espalhavam o seu peso pelas serranias e pelas aldeias, retornados, tardiamente, em caixões de metal. Só os batalhões passaram a fazer encontros anuais, em almoços de confreternização e uma missa pelos companheiros perdidos. Ainda acontece, já de mistura com famílias e filhos. Acontece mas não tem mediatização, não é analisado como fenómeno humano e de afectos leais, de retratos baços, de rostos jovens que se tornaram pesados, sorrindo novas comoções pelas comoções de outrora.
Há livros escritos, breves centenas sem verdadeiro esforço editorial. Versos em edições de autor. Contos em volta daqueles anos estranhos, diluídos entre a ternura e o medo. Mas isso não tem a dimensão dos encontros institucionais que as universidades poderiam ter desenvolvido, com a ajuda de tanta documentação e testemunhos vivos de que dispomos. Não se trata de defender ou negar a legitimidade da guerra, como ela se fez, bem e mal, e se prolongou por catorze anos apodrecendo. Não é disso que se trata. Aprendemos todos o que havia para aprender, após disfarçadas castrações da ditadura. Mas depois da libertação de 74, depois do abrandamento das feridas principais, os nossos homens pensantes deveriam ter-se interrogado fora dos exílios sombrios, deveriam ter colocado os acentos nas palavras, dizê-las, lembrá-las, tornando legível o nosso «Apocalipse Now» enfim apontado pelos meios de comunicação e pelas artes, incluindo os poucos filmes que tocaram o problema ao de leve, iluminando o país ainda mordido de dor, um país a sentir-se absurdamente culpado.
Quando estoirou a guerra civil em Angola, uma guerra muito mais grave e doentia da que os portugueses fizeram sem arrasar cidades nem parar o desenvolvimento, pensei de novo em Fanon. Escrevi «Angola 61, uma crónica de guerra» e disse tudo o que vi, o que senti, o que perdi. Disse então, ao escrever a última parte, que imagem tinha de Luanda, na distância marítima:
« Uma última torre persiste no horizonte, é como alguém que se distinguisse na multidão, como em Alcântara, e nos acenasse um derradeiro adeus. Depois, na atmosfera lilás, tudo desaparece. Angola deixou de existir».
4 comentários:
Arrepiante!
Li, mas voltarei a lê-lo!
É dramático mas BELO!
Seria interessante que houvesse maior abertura, divulgação desse livro "Angola 61, Uma crónica de guerra".
Tenho pena que muitos livros neste país sejam encobertos! Este foi um deles.
O Prof. Rocha de Sousa deveria falar aqui no seu espaço mais sobre os seus livros. Pelo menos daqueles que foram editados e que não tiveram "cunhas" para ser o best seller, como muitos o são e que não têm amis valor por isso.
Daniela
Muito bom,sem sombra de dúvida.
Já agora visite o meu blog e nele o caixote do lixo, post talvez de junho ou julho de 2005 e diga-me o que pensa das minhas pinyurices.
Voltarei a vir aqui à procura de mais trabalhos.
Não prometo ler o livro porque as feridas continuam abertas e custa pôr lá o dedo. Tem uma opinião que partilho no meu post «Mágoa» sobre a necessidade de se divulgar mais sobre o que se passou nas ex-colónias.
O Professor deverá sim, referir aqui as suas publicações, como comenta a Daniela.
Voltarei sempre.
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