terça-feira, março 25, 2008

ATÉ OS ACTORES VIRAM ESTEREÓTIPOS









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Tenho sido, desde o início das telenovelas brasileiras, um observador atento a este género de expressão audiovisual. É corrente ouvir-se falar com desdém desse produto, seja ele produzido no Brasil ou em Portugal. Certamente que se pode argumentar que as regras ou modos de fazer novelas para televisão, aqui e além Atlântico, sem falar nas vias semelhantes percorridas pelo México e Venezuela, cristalizaram em estereótipos profundamente negativos, capazes de diversos efeitos de devastação cultural, de distorção do gosto, criando vícios de consumo televisivo bastante negativos. Pouco depois do estado de graça da famosa «Gabriela», as pessoas de cultura, comentadores e intelectuais, disseram-se distanciados desse tipo de poluição, negando aos sete ventos o mínimo interesse por tudo o que se fazia. Ainda nem sequer surgira «A Vila Faia», primeira experiência portuguesa na esteira (e por vezes na pior esteira) do modo brasileiro. E contudo, relativamente a pessoas cultas mais disponíveis, houve quem se atrevesse a apontar áquela produção portuguesa um breve tom conservador, no que este conceito pode ter de positivo, demarcando-se assim de alguma das trepidações especulativas, em termos de mercado, largamente explorado pelos produtores basileiros e a despeito da boa tradição que eles haviam certificado por volta dos anos sessenta. Os mais cépticos, mesmo que por casmurrice ou snobismo, diziam que a língua portuguesa não se prestava para os géneros ausiovisuais, quer no cinema, quer na televisão, incluindo (género diferente) no próprio teatro. Falava-se de tudo num santo acaso de asneiras e o chamado grande público já não foi capaz de reparar no novo cinema português, nessa obra prima que se chamou «Abelha na Chuva», nem nas telenovelas da SIC ou da TVI, quando estas estações ainda quiseram marcar pontos referentes à nossa identidade. Hoje está sobejamente provado que a língua portuguesa não é castradora da expressão oral e apenas tem de se adequar às formas do texto ou da fala, do perfil das personagens, sem esquecer os níveis de altura, o contexto onde se dialoga, quem e porquê dialoga. É para isso, entre outras coisas, que existem os directores de actores, a par de guionistas estudiosos e de directores de canal que permitam a experimentação inovadora (e libertadora) dos realizadores.
A verdade é que se formou entre nós uma verdadeira escola de novos actores, tendo os mais idosos, sobretudo vindos do teatro, procurado alcançar patamares de naturalidade e expressão significante. Hoje, entre as pessoas que souberam seguir o fenómeno da telenovela portuguesa, nota-se um reconhecimento de verdadeiras descobertas, de uma vitalidade contaminante, por vezes a emergêmcia de actores de grande qualidade, que brilharam nas obras mais profundas e mais desligadas da «fábrica de salsichas» que nos chegam de longe, novelas que alguns produtores procuram contornar ou esquecer, ligando-as à equívoca repulsa pela lentidão do cinema português. Depois de grandes sucessos (e se mais houvesse mais o público apostaria neles), o binómio produto/audiência, defendido por homens que deveriam saber que Bach pode aceder ao sucesso no audiovisual como qualquer Carrera de Coliseu a abarrotar. Tudo depende do modo como se encena cada proposta no meio televisivo, no qual Pina Bausch poderá arrastar largas audiências como os saraus de dança de salão, sempre repetindo atmosferas, soluções técnicas, compéres de saias de honra, numa ensurdecedora projecção de mau gosto e circo, embora se deva reconhecer o melhor de tudo: o trabalho de pessoas de vários meios artísticos e a capacidade de prestações surpreendentes.
O pior chegou entretanto, com novelas de grande produção, com belíssimas prestações de representação, mas em que tudo se encontra espartilhado pelos piores truques brasileiros, histórias da maior inversomilhança, cheias de armadilhas vindas do inferno, mentes tortuosas até ao caricato e ao nojo. Porque assim (dizem os tais directores de sucesso) é que se adoça o gosto do público, falso problema já amplamente provado. O público muda de azimute e de capacidade analítica, quando os argumentos são bem pensados, inscritos na nossa cultura e cultura artística contemporânea. Na hora em que começa, com avisos de grandeza, uma outra telenovela, aproximam-se do fim, por exemplo, «Fascínios» e «Deixa-me amar-te», coisas por vezes indecorosas, mesmo sem falar em termos culturais, artísticos e pedagógicos. Gente que apreciava a actriz Alexandra Lencastre, e até o irregular Rogério Samora, deplorou as suas crises patéticas, forçados a representar assombrosas anomalias, com os tiques à flor da pele ou sem saberem para onde endereçar os passos, nomeadamente durante as solidões lacrimejantes do tal brâmane de empréstimo, o pobre Raul. E quem poderá calar-se quando a família da Guidinha aparece em cena, sempre na mesma sala e nas mesmas posturas, ganaciando em termos absurdos e cuspindo na pobrezinha da Ester. Eu diria que isto tem que ser analisado por quem de direito e os falsos especialistas deportados para os debates sobre os pequenos equívocos da política. Os modelos não se copiam, renovam-se. Uma cena íntima, de afecto e mútua compreensão murmurada, não pode ser esticada, entre redundâncias enjoativas, só porque os criadores do produto acham que têm de meter canções onde elas não têm lugar. As bandas sonoras, mesmo das telenovelas, têm de perseguir o que de melhor o cinema nos ensinou, apesar da diferença dos meios, assim como a luz tem de nos relacionar com os tempos e horas do dia em que estamos a viver. Até isso, tão fácil de fazer nos nossos dias, acusa por vezes graves entaladelas.
Precisamos de uma Associação de Espectadores que, abaixo ou acima do déficit, comecem de facto a exercitar a cultura dos seus direitos, entre a própria publicidade que rompe todos os limites legais, experimentando terapias cívicas em todos os ramos desse campo. O cinema também pode ser incluído, mas nesse caso os monopólios precisam de regulamentados, devendo fomentar-se a vinda até nós de cinematografias quase desconhecidas, minimizando o design robótico, pateta e monumental, com que a América nos coloniza, tornando alguns espectadores consumistas da mera pressa, incapazes de dispensarem a avalanche de publicidade que lhes im-pinge Rambo contra a revisitação de Wells, que vão salivar na «Call Girl» em vez de, sem pipocas, reverem os valores estéticos e filosóficos da obra de um Tarkovsky, cujas edições em DVD felizmente se têm esgotado.

1 comentário:

jawaa disse...

Só hoje li este longo texto com mais atenção. Sabe que não sou entusiasta de novelas (nem sequer portuguesas, normalmente sigo uma só e de preferência brasileira) ao fim de um mês encontro a «minha» na SIC depois do noticiário da 2, pelas 10.30, com as mesmas patetices amorosas de um menino padre com umas índias à mistura e uns senhores de engenho à moda antiga, prepotentes e maus. Entretenho-me com a «Jerusa» da Gabriela, aqui primeira-dama ao lado de um Prefeito a seguir os passos de um Bem-Amado que me dispõe bem.E chega.
Mas estou de acordo consigo na necessidade de uma Associação que defenda os direitos que nos assistem quanto à qualidade do que nos impingem diariamente.
Não é só o povo que gosta, e se gosta ensinem-nos a saber gostar.
É a função de um serviço público.