terça-feira, novembro 18, 2008

SARAMAGO DADO A VER POR MEIRELLES


A relação do cinema com a literatura foi sempre atravessada pelas maiores incertezas. Tudo acontece pela dificuldade em tratar formas literárias, o seu próprio tipo de recepção, num quadro linguístico muito diferente, cuja apreensão decorre de um tipo de imagens em geral fortemente coladas ao real. Um livro como «Ensaio sobre a Cegueira», de José Saramago, ao contrário de outras imitando o mais possível a vida quotidiana das pessoas, é o caso das obras aparentemente intraduzíveis no cinema. Até porque parece desenvolver-se fora da realidade, mercê de um fenómeno de cegueira súbita que se estende, como horrível epidemia, a todas as pessoas (menos uma, saberemos), situação projectada no mundo urbano, numa grande cidade algures, gerando as maiores tragédias e a destruição alargada da rede que liga os indivíduos, as suas instituições de trabalho, a gestão das logísticas e das leis capazes de conferirem à vida em comum vários equilíbrios de sustentabilidade.





O filme do brasileiro Fernando Meirelles, além de nos dar a ver os personagens e as situações do livro com grande fidelidade de aproximação, torna frequentemente mais claro o sentido (e as simbologias inerentes) do que a própria obra literária aponta.. Não é uma questão de ser melhor ou pior. É o alcance da justa medida das analogias, superações indispensáveis, identificação corporal dos grupos humanos inicialmente atirados para uma quarentena abominável. Como é provável, o modo aparente de propagação da cegueira levou as autoridades sanitárias à solução preventiva, aliás a breve trecho intolerável, em gueto, na medida em que a demografia dos pacientes aumentava, inclusive até à carência dos meios alimentares e de qualquer suporte de segurança. Fechados em duas camaratas bem depressa inundadas de desperdícios, fezes, líquidos iníquos, os cegos atemorizam-se primeiro, relacionam-se mal, dividem-se em facções: os que se apropriam da corrente de víveros impondo aos da outra caserna a lei do meis forte, através do roubo e pela troca de mulheres por certas quantidades de comida.

Julianne Moore

É preciso dizer desde já que, a partir dos primeiros sintomas, a mulher de um dos personagens (actriz Julianne Moore) conservou a visão, facto que o casal decide esconder em nome de sobrevivência. E ela conservou a visão sempre, apesar de teremer perdê-la de um momento para o outro. Mas isso permitiu-lhe, estoicamente, minimizar esforços, ordenar muitas coisas, dirimir conflitos. A história desta peste branca é contada com grande verosimilhança e detalhes surpreendentes, além de medonhos. Depressa se vai compreender que o eterior estará também vitimizado e que a assobrosa barbárie vivida na quarentena tem de ser interrompida em nome da dignidade possível, em busca da mínima aprendizagem dos actos comuns, em ordem à sobrevivência e aos agrupamentos solidários, capazes de partilharem lugares de vida, entendimentos, compreensão so estado do mundo.


O ensaio, no fundo, é mais sobre a natureza humana do que sobre aquela oclusão visual por uma espécie de cortina branca. A redenção é alcançável, pensam os mais atentos aos sintomas em redor, sobretudo quando, além da mulher não invisual, outro elemento do grupo organizado em torno dela recupera a visão. A estabilidade insular desse grupo, porventua como de outros que vemos no caos inóvel das grandes paisagens urbanas, aponta para novos objectivos e para a própria irradicação do fenómeno. É então muito plausível que nos lembremos de «A Peste», de Camus. A busca do homem, contra uma realidade absurda, assaz destruidora dos valores individuais.

A pastosidade da escrita de Saramago, a sua falta de sentido visualizador através da palavra, tornam ´«Ensaio sobre a Cegueira» algo obtuso e pouco empolgante. O filme de Meirelles descodifica sombras e ocultações, usa efeitos de fotografia, encenação e montagem, com forte qualidade expressiva e belíssimo recorte plástico. As diversas situações, crise após crise, tem um lado de blasfémia esclarecedora, faz-nos ver com a mulher que vê, sentir a grandeza da sua força, do se humanismo, da sua esperança. Há soluções cinematográficas, inclisive a passagem a uma certa unificação pelo branco e pelos valores cinza, que nos arrebatam e iluminam, desberta após descoberta. Saramgo é-nos dado a ver pela densidade funcional do filme de Meirelles. E quando a mulher, na varanda da sua casa transformada em albergue, na escolha solidária da paz, ergue os olhos ao céu, num espanto de atmosfera branca e pergunta quando será a sua vez, o realizador baixa a câmara, entrando em campo o esplendor semi-desfeito da cidade em todo o horizonte, a chave humana da salvação é desvendada à clara luz da manhã.



Rocha de Sousa


Vejo o livro como um hino à comunidade. É como se estivesse a dizer que é preciso tirar a visão às pessoas para que possamos, finalmente, criar um ambiente de solidariedade comunitária. Fernando Meirelles

2 comentários:

jawaa disse...

Eu prendi-me ao encadeamento do livro e apenas o li uma vez. Não tencionava ir ver o filme, porque receava o resultado da adaptação, embora Fernando Meireles me mereça a maior confiança.
Agora esta sua excelente explanação leva-me a reconsiderar.
Obrigada.

bettips disse...

Foi um prazer receber-te lá na minha casa-sentimento. O jogo, entro nele há mais de 2 anos e tem sido uma bela companhia!
Bem sei que o tempo te escasseia, pela acuidade com que descreves/escreves/pintas/aglomeras os materiais humanos e espirituais. Comigo e por muito menos, acontece o mesmo.
Aqui deixo o meu obrigada. E uma breve referência aos meus comentários: normalmente escrevo com o coração. Por vezes acerto em outros (corações). Outras, perco-me da vida e os meus clarões nem por "visuais" são percebidos.
A crítica do filme (o livro, esse li-o logo) está sem rodriguinhos nem fantasmas inventados; e gostei imenso de te ler, transmitindo a ideia de Alegoria - claro em Saramago! - e de Salvação...que é o que todos teremos necessidade/dificuldade em acreditar.
Grata. Até sempre!
Um abraço