quarta-feira, dezembro 24, 2008

O EQUADOR SEGUNDO OS MILHÕES DO MERCADO


A propósito da estreia da série televisiva baseada no livro EQUADOR, de Miguel Sousa Tavares, o Diário de Notícias começou por abordar o acontecimento a partir do futebol, o que a própria TVI, produtora dos 26 episódios de uma obra monumental em quase tudo como aliás aquela estação costuma fazer: abrir o noticiário com um desses bárbaros «rncontros» em que se tornaram os jogos nos relvados dos estádios em Portugal. Pois o Diário de Notícias, pela mão de Tiago Guilherme, descobriu, na estreia do EQUADOR, que a exibição do Futebol Clube do Porto batera em audiências aquele evento. Mas o realizador da série, André Cerqueira, logo minimzou tal incidente, ao realçar o facto do interesse pela abertura da série ter sido assumido por uma audiência maior nas classes altas. A graça desta «inversão» é tanto maior quanto o jornalista-escritor, Sousa Tavares, é indefectível adepto do FCP. Não sei mesmo se estas coisas devem ser tratadas assim: o FCP anda a jogal mal (ainda) e a abertura da série começou mal, igualmente, em vários sentidos. André Cerqueira achou tudo em harmonia, sobretudo tendo em conta de que a obra literária vendeu mais de quatrocentos mil exemplares e não é legível só pelo primeiro capítulo. Após esse episódio, a habituação à forma tende a consolidar-se. Quanto aos efeitos técnicos e outros, o realizador afirmou que isso se devia, a ser verdade, aos riscos que ele aceitou correr. Salientou que o recurso a determinados meios, como o croma, é a atitude de qualquer artista. Se quisesse teria trabalhado de outra forma, sem deslizes possíveis, A verdade é que o realizador talvez não tenha arriscado tanto quanto julga, porque o risco, em arte, pouco tem a ver com a grandeza dos meios. Disseram os responsáveis que o público havia sido captado: um público «escolhido» entre aquele que menos vêm televisão: gente da classe alta. Era preciso, tão só, esperar que o fenómeno contaminasse o público em geral e se apropriasse das grandes potencialidades da obra fílmica.
Vejamos se o problema é das audiências ou as audiências altas se utilizam para disfarçar mita coisa.

Logo à partida, nesse tal famoso primeiro episódio, depressa saltou à vista o uso indiscreto do croma, quando o «contorno das personagens denunciava o facto dos actores terem sido colados ao espectáculo prévio dos cenários naturais» Cerqueira anotou logo essa grandeza dos riscos e «o facto de as pessoas só serem apontadas quando ousam» É preciso correr riscos, mesmo sacrificando alguma perfeição. Ao contrário, sem ponderar avanços, hipóteses formais das novas tecnologias, parece que todos ficam contentes. «Eu podia ter filmado em vãos de escada apenas com as personagens vestidas de época. Procurei mostrar Lisboa em todo o seu esplendor. Ver a rua Garrett, no Chiado, sem que apareça a FNAC ou a loja do Hugo Boss» Um autêntico golpe de asas, diremos nós. Quem fala assim não é gago, pode é não ser inteiramente um bom realizador de cinema ou televisão. O esplendor de Lisboa, as visibilidades entre camuflagens, são por vezes o melhor caminho para falhar meia dúzia de planos e comprometer toda uma sequência, toda a excelência da forma. Há momentos em que esse método aperta a câmara à estreiteza de uma geometria canónica e os alinhavos são depois bem difíceis de cerzir. O cinema (e mesmo a televisão) é outra coisa, tem maiores subtilezas, arrisca mais, quando, entre outros exemplos, se chega a registar planos num ponto preciso e outros a dezenas de quilómetros, assim fingindo que tudo se passou no mesmo lugar. Coisa que não tem nada a ver com o croma há pouco evocado. De resto, há vãos de escada que fazem melhor contexto do que um salão revelado de ponta a ponta.O primeiro episódio de EQUADOR está cheio de verosimilhanças locais, trabalhosas e caras, que não servem para nos fazer acreditar no lugar, nem nas pessoas como marionetes, tudo marcado, sem realismo nem metáfora.
E que faz o realizador numa grandeza espacial que lhe escapa e que enche de gente como pode? Em geral, enquanto deixa os actores e figurantes mais ou menos parados, ensaia alguns «quadros arriscados», perto das coordenadas do plano sequência. Não muitas vezes mas o suficiente para vogarmos com a câmara, mais ou menos alheios às gentes que vamos vistar. O tom da época, que poderia ter sido tratado numa fotografia mais evocativa e menos copista, perde-se na encenação empaturrada. Quanto mais se copia menos se interpreta e a primeira parte deste episódio está cheio disso. A montagem segue as regras, o que em princípio estaria bem; aqui não, em todo o caso, porque o passado chega-nos da memória à consciência em misturas de registos vagos, distantes, e outros emocionalmente muito nítidos. Em o EQUADOR, o responsável por dar a ver sem reproduzir, farta-se de nos descrever a direito, sobre linhas direitas, quadros da época e traduções do livro. Os actores, alguns dos quais são belíssimos em telenovela, estão aqui espartilhados por uma marcação cerrada, dizem pouco, falam com pedaços de literatura colados a bocados de oralidade. Já não falo de outros detalhes, como o temperamento do rei, e a falta de nuances sonoras consoante o quadro psicológico em que se movem as personagens. Esplendor sim, há a rodos, produção+produção. Mas como tudo o que é demais não presta, as marionetas apequenam-se sobre o lado sumptuoso do efeito de catedral.
Mão é assim que se faz assim.
Talvez volte a este assunto, eventualmente para poder desdizer o que desta maneira digo. Quero justamente acentuar que as sequências que desenham um trecho da Índia onde a acção decorre não parecem feitas pelo mesmo realizador: o grau de nitidez faz sempre racord, o lugar é admirável, as angulações circulares funcionam muito bem na absorção da paisagem e das personagens - e até estas parecem um pouco mais soltas do garfo que haviam egolido antes. Claro que ainda não falam, ainda representam, e, com um bocadinho de mais obediência a uma esquisita direcção, poderiam parecer estar em palco. Seja como for, entre figuração, acção, lugar e coerência fílmica, esse momento é, de forma clara, melhor do que as viscontianas vistas lentas nos «armazéns» da primeira parte, detalhe a piscar o olho ao especialista em estilos, grandeza de todos os esplendores (sem FNAC, obviamente) a mentir uma época que não chega a emergir do fausto visual.
Ele há com cada vão de escada...