sábado, junho 27, 2009

CAMPO DE ADORADORES DA MORTE PELO SOL

O senhor Silva pertence às redes comunitárias de adoradores do sol. Na praia, certamente. O mundo já não pode viver sem os Silvas. Eles não querem nada com as serras e as cidades. É no verão que se deslocam aos milhares, porque o sol queima muito mais nessa altura. As estradas, logo a partir de Julho, enchem-se de gente. Gente dentro de carros fumegantes. As auto-estradas são pagas e quanto maior for o percurso mais se paga. Os Silvas viajam com um plano de poupança, usando de preferência pequenos carros utilitários, em segunda mão e pagos a prestações. Em estradas atulhadas. Antes de Julho já as filhas dos Silvas andam dias e dias a caçar todos os raios de sol, ali mesmo em Santo Amaro. Umas têm medo dos avisos quanto à exposição aos raios solares por causa dos cancros da pele. Mas são como os fumadores: um terço deles, em todo o país, deixou de fumar pelo aumento do preço mas, acima de tudo, pela proibição de expelir fumo de cigarros em todos os lugares públicos, escolas, empregos, restaurantes, hospitais, e até igrejas. A campanha sobre as praias, largamente desenvolvida pelas autoridades, não fez baixar os adoradores da morte pelo sol. Não é por acaso que as meninas, fugindo ao provincianismo e aos costumes antigos, já afirmam querer a cremação quando morrerem. Caixões e cemitérios, que parolice, que seca: é muito mais higiénico a cremação dos cadáveres. Depois, sem nojos, ficar numa pequena ânfora de estilo grego, ali na própria sala, ou no quarto da família. Se há pessoas que derramam os mortos, por acidente, na carpete, outras há que usam processos de prevenção contra tais casos, ajudando a indústria dos sarcófagos de metais preciosos para uso dos mais colados à necrófilia. De resto, há quem vá a uma ponte velha, aí abrindo a caixinha e polvilhando o espaço e as águas com o pó dos mortos. Outras alternativas são as próprias praias, onde muitos começaram a morrer: e é mesmo durante o banho de mar que filhos e netos de um Silva qualquer (já não se trata de uma questão de minorias) despejamam as cinzas a cerca de cinquenta metros da orla de areia suja, entre a espuma dos dias, eles boiando com a ajuda de bóias de plástico insuflado e uma coroa de flores que deixarão ao sabor das correntes. A berraria dos miúdos é clara e intensa, chegam a esticar os dedos molhados por baixo da caixinha, sujando-se com a cinza do avô e logo admoestados pelas mamãs para lavarem já já os dedos na água salgada até não sentirem nem um só grão na pele. Mas quanto ao resto, não há problema: a multidão enche cada campo em que se transformou a praia, cada pessoa luta arduamente pelo seu bocado de território. Quando consegue lá estender a toalha, abre logo um chapéu de sol e desata a cobrir-se de protector solar número 40. A segurança e a comodidade são coisas que desapareceram há muito. A qualidade de vida, ao descer na maior promiscuidade, costuma matar, de insolação e enfartes, pelo menos dez pessoas por semana. Agora as concessões são a dobrar e comportam, a preços fabulosos, serviço médico e de enfermagem. Os deputados da Assembleia Nacional Superior já enfrentaram a hipótese de criar cotas para cada praia e consoante as horas. E alternâncias. E até proibições. Como ninguém tomava as medidas relativas aos vários regulamentos, os campos foram municiados com grandes chapéus de sol, mas os Silvas preferem ir para os piores sítios, com direito a pequenas sombrinhas de sua propriedade, as quais espetam na areia, o eixo logo rodeado de mochilas, cães, meninos e bolas. Qualquer Silva que se prese, após essa hora de marcha, luta e pouso, abrem os seus banquinhos portáteis, ficam em calções, besuntados a 40, e lendo jornais (Bola, Record, Correio da Manhã). É claro que o sol atravessa a lona dos toldos, mesmos dos toldos institucionais, e ninguém descobre ninguém neste mar de adoradores do sol, ou mesmo da morte por lento suicídio em nome do bronzeamento. As mulheres são as que mais rezam sob o sol e o creme a escorrer, pele escuríssima, tudo muito pior do que em Fátima.

3 comentários:

jawaa disse...

Resultado da massificacao.
Desculpe, mas esta enganado:as meninas querem ser cremadas para serem transformadas em diamantes...!
Perdoe a ortografia, ja sabe a razao.

Miguel Baganha disse...

Um artigo actual, de carácter preventivo e muito bem satirizado. Excelente, João. Como sempre.
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Sem gaguejar, eu diria: - " o Homem quer regressar. "- ele está pois, de volta à idade do bronze.

Um abraço,
Miguel

Paula Raposo disse...

Em boa hora aqui vim! Um texto excelente e irónico q.b.Gostei imenso. Beijos.