Nem sempre, em Portugal, se prestam as devidas homenagens aos grandes criadores do domínio das artes. Há excepções. Mas nesses casos o excesso de vénias e privilégios redundantes chega a comprometer a o sentido das coisas, a medida do próprio génio. Paula Rego cabe perfeitamente no âmbito deste quadro, no sentido destas palavras. Este rosto arrasta com consigo a pertinência da obra entretanto louvada retrospectiva após retrospectiva, um rosto que ainda conheci jovem e belo, dividido entre uma entrevista que tinha de fazer à pintora, que soletrava o encanto das suas colagens, e o manto de formas fascinantes estendido no chão do atelier. Tudo lhe acontecia, já nessa altura, como ela pensava: pois agora, levada em ombros, como no futebol, aliena a sua grande obra dos anos 60, retira-lhe importância, e afadiga-se, entre modelos vivos e histórias de terrível sentido ou violência, no trabalho alucinante com pastéis de óleo, numa espécie de super academismo com um fio de perfídia, o gosto pelas crianças em plena catástrofe do medo e das maldades risonhas, tornando-se, enfim e afinal, numa das grandes contadoras de histórias em pintura, pintora ilustrativa, sem pudor, a quem os críticos de há uma ou duas décadas, puniriam sem piedade. Eles apagavam quem representasse ou contasse um «pedacinho» de gente à beira mar. Paula Rego tem agora, em abundância, as mais disparatadas consagrações, como este museu ou «Casa das Histórias», tudo feito segundo o lado mais visionário da pintora, mulher forte e sonhadora, que deseja e realiza histórias, as histórias da terrível tradição portuguesa, os pesadelos, os gestos torcionários sobre modelos no exercício da cópia interpretativa, fealdade a conjugar-se como beleza, o belo horrível, gente do fundo dos tempos, um rosto profundamente marcado por tão intensa entrega aos gritos e às armadilhas, um rosto, enfim, que se parece cada vez mais com os outros rostos, os pintados, os rostos do absurdo; é com eles que Paula vai conviver, patética, legando porventura a sua própria máscara às projecções de diversos estados do subconsciente e da memória. Paula sente a angústia de tanta coisa junta, percebe o lado enviesado de tanto êxito e mordomia. Mas é o que sabe fazer no atelier, lugar dos seus «brinquedos», dos seus «bonecos». Fica um pouco impertinente com a balbúrdia, diz coisas tolas e sábias, vai ter uma «catedral» para os mutantes que foi espalhando pela cultura das nossas regiões. Ao menos ninguém lhe aponta um dedo. Ninguém lhe pede contenção. Justamente: porque à sua volta todos perderam a contenção. Portugal está ali. Inteiro.
Declarando-se envergonhada com tantas exposições e ruído à sua volta, Paula Rego, na última revista do Expresso parece tomada por sentimentos patéticos, aflita com a desarrumação do ambiente de montagem do museu e das suas obras, esta tem de ficar à frente, a «Mulher-Cão», aliás capa do catálogo. Mas ela anima-se diz que «todos poderão brincar lá dentro. Seja apenas com um olhar, seja com o desejo de partir à procura dos contos escondidos naquele universo feito de espanto» (A Casa das Histórias é um projecto de Eduardo Souto Mourinho). Trata-se de, reconsagrando a obra de Paula Rego, fazer mais balanços, corresponder à sua obsessão pelos encantamentos das histórias: o museu passa a ser a casinha da senhora-menina, lugar onde ela poderá continuar a rir das suas brincadeiras desabridas e algo pérfidas. A pintora fala das histórias e assegura que «são extremamente violentas, física e psicologicamente. São más e belas, O grotesco é belo, que é a coisa mais maravilhosa que existe». E ainda acrescenta, entre outras coisas: «Há alguns contos (literatura portuguesa) que são terríveis, como o da mulher que corta o peito para dar de comer ao marido». Nesta festa do visual e do terrível, comenta: «Num país de brandos costumes, fazem cada clister... As pessoas são cruéis, mas às vezes também dão beijinhos. Portugal vive muito do chicote e caridade. Isso fascina-me. Admira-me. Espanto-me».
Depois disto não se espere que a pintura de Paula Rego seja um aprofundamento do país em termos de testemunho e denúncia. Apesar das personagens sombrias e da esquizofrenia delas, o que fica não é um dedo rasgando iniquidades. Fica a história de brincar, feita tecnicamente com grande profissionalismo. «Há muita narrativa na minha pintura. Porque não posso fazer um quadro sem ter uma história, sem ter em enredo»
Lá se vai a «pintura pela pintura», o primado da cor, o fim como abstracção. A não sar que Paula Rego seja apenas em parênteses redentor mas equívoco.
Depois disto não se espere que a pintura de Paula Rego seja um aprofundamento do país em termos de testemunho e denúncia. Apesar das personagens sombrias e da esquizofrenia delas, o que fica não é um dedo rasgando iniquidades. Fica a história de brincar, feita tecnicamente com grande profissionalismo. «Há muita narrativa na minha pintura. Porque não posso fazer um quadro sem ter uma história, sem ter em enredo»
Lá se vai a «pintura pela pintura», o primado da cor, o fim como abstracção. A não sar que Paula Rego seja apenas em parênteses redentor mas equívoco.