sábado, setembro 12, 2009

CIVILIZAÇÃO DO PARADIGMA, OBESA E CASTRADA


Estamos a viver a idade do paradigma, quando, ainda há bem pouco tempo, a obviedade é que contava. O paradigma tanto pode anteceder as decisões erradas dos pensadores como a prosódia e prosápia dos políticos, ou mesmo dos comentadores. O paradigma permite-nos encarar com maior optimismo a globalização, necessariamente massificante e geradora de soluções comunitárias híbridas. Esta cultura tende a apagar a memória mais profunda das antigas civilizações e sem excluir a compressão redutora da própria civilização contemporânea, esta mesma, feita de adições inúteis ou de necessidades artificiais, com vista a tornar tudo fascinante mas cada vez mais despido das grandes sínteses pelas quais se coordenam possíveis descobertas de viragem para objectivos fortes mas amenizantes. De resto, estamos igualmente a viver o empobrecimento da virilidade, entre perigosas mitologias sobre o corpo sexual, a par de sucessivas fracturas do prazer livre, sobretudo naquele quadro através do qual julgamos entender o mundo; não há mais paradigmas que invertam a perda da actitude eréctil ou o desconforto da ejaculação precoce, temores crescentes com diagnósticos facilitados pela desordem do mundo, pela complexificação de todos os excessos, entre o desejo, a informação e o consumo. O desgaste do homem aumenta com as forças insensatas a que se submete, porque o ensinaram (manipularam) para competir em vez de partilhar, porque lhe curaram as pestes com curto-circuitos cerebrais, convencendo-o de que o vácuo que também cresce é apenas uma armadilha da lassidão ideológica.












Há um pequeno filme de produção inglesa, ligado às opções musicais e televisivas, que nos mostra o termo da civilização tal como a conhecemos agora, entre cidades devastadas ou submersas. Imperam tribos urbanas disputando territórios e meios de comunicação abortiva, salteadores munidos de câmaras de vídeo em pleno paradigma da caça redutora de imagens, correndo nos corredores virtuais do acesso ao poder. Sobram, por outro lado, palavras intermitentes nas grandes paisagens carregadas de ruínas, siglas de velhos impérios transcontinentais, biliões de referências descodificadas que o homem das novas máfias, obeso, acumula em substituição das proteínas, por dentro de cozinhas onde se dispersam, inúteis e fora de todos os prazos, caixas de doces e enlatados sem nome. Restos de salas ou quartos exibem igualmente largas obstruções de lixo, incluindo monitores ligados em permanêmcia a uma rede de canais ZIK, marca brotheriana, aindda capaz de simular o advento de novos paradigmas, com domínio em prosódia radical, lexical, e larga incontinência de discursos opacos. O verbo surge em pleno ruído sem pausas, tudo deglutido pelos neotoxicodependentes das caravanas geminadas, apartamentos incompletos, caves soturnas alimentadas do exterior com atmosfera pouco oxigenada. Max, o reporter, caminha ou corre como qualquer personagem dos antigos thrillers americanos. Ele maneja a sua câmara como qualquer máquina letal dos exterminadores vindos do futuro para emendar erros do passado e salvar paradoxalmente o futuro, dimensão que o espaço e o tempo não explicam, acabados entretanto os paradigmas. Max é um combatente de qualquer coisa cujos limites e identidade ele mesmo já não sabe localizar com precisão. E trabalha com uma mulher irrecusável, em cenários dignos dos melhores videoclips do fim do século XX.



Um último personagem, condenado ao consumo da informação mais aleatória e alienante expedida pela ZIK, surge em planos fixos cortados por cascatas dos mais diversos dados de informação, algo que nos lembra a tortura da «Laranja Mecânica», ver contra a vontade dos olhos e a capacidade do cérebro, do corpo todo, imagens e letras, brumas, cores, alarmes, tudo sem fim e sem melodia. O homem que está preso por esta cadeia de informações não descodificadas, tudo em nada no registo macro, absorve sinais sem história e luzes insuportáveis, os gritos e ansiedades do mundo sob máscaras de empresas perdidas no fundo do tempo. A aflição deste condenado da civilização que o integra e serve tende a minimizar a nossa própria consciência e é no paroxismo daquela carga sem retorno que assistimos, em paradigma, ao rebentamento de um provável novo homem assim amordaçado à terrível ordem do horror, projectado em todas as direcções na forma de pedaços de carne e peças anatómico-estruturais cuspidas em redor, os olhos, os ossos da cabeça, todo o ventre dilatado espirrando líquidos e tripas, jactos de sangue, palavras mal digeridas e logo diferidas, parte da face, um maxilar, líquidos gordos, amnióticos, milhares de dados indecifráveis caindo, pouco depois, como flores de neve sobre um território urbano inteiro, chuva de assombro, calada no mais opaco dos silêncios.




Provavelmente, isto não passa de um pequeno artifício das artes visuais, anos 90, para gerir o medo que que excita a fome de tudo, bolos secos e carne pôdre, medo também do futuro e das graves infecções do mundo obstruído em nome de uma civilização assente no paradigma do global, entre monstruosas catástrofes «naturais» que começava a engolir toda a ideia fanática dos crescimentos insustentáveis.


Fui ver o noticiário da televisão (ontem, quando escrevia este texto) e o que vi, numa longa reportagem de alguém que, por acaso, dispunha de uma câmara vídeo, testemunhava mais do que estivera a pensar: registava a própria derrocada das torres gémeas, em nova Iorque, mostrando um certo fascínio que o horror também provoca, enquanto os bombeiros, confinados a um átrio onde nada podiam fazer, estremeciam a cada estrondo dos corpos que caíam do alto do edifício que se desfez mais tarde. Essa boca aberta no esgar da morte por explosão exprime brutalmente o que muitos cidadãos americanos e de outros países sentiram no seu dia de apocalipse.




Um novo Sísifo,
talvez um novo Prometeu
a sofrer um crescimento
que não inventou
nem pediu
nem reclamou.














Um fotógrafo que metralha o visível
com a sua câmara insaciável



































Ela sabe guardar
os circuitos
informáticos
e dar respostas

rápidas ao cameraman que
procura um atalho para o futuro

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

Este paradigma obsceno que jamais deveria ser seguido é relatado com a agilidade e sabedoria de um grande cineasta. O léxico aqui empregue tem a equivalência de uma paleta com a cor e os tons certos. Muito adequados ao tema.

Bacon, gostava de pintar assim: cenários obscenamente belos.

Gostei do texto e das imagens. Autêntico. Só não gostei da verdade.
Sempre em forma, João! Parabéns!

Até logo.
Um abraço,
Miguel-banzado

jawaa disse...

Massificação e globalização são, já de si palavras aterradoras, porém, ainda acredito que haja atalhos para um futuro menos assustador, embora um futuro a prazo.

Só um artista multifacetado e completo consegue construir um post com esta dimensão.