Saramago, escritor português e Prémio Nobel pela sua obra literária, é conhecido, enquanto pessoa, por falar devagar e face austera, por ter preferido viver em Lançarote, na companhia da sua mulher espanhola, Maria del Pilar. Da obra, é incontornável citar obras como «Memorial do Convento», «Levantados do Chão», «O Evangelho segundo Jesus Cristo» ou «Jangada de Pedra». A sua última edição, do livro «Caim», caíu em Lisboa (ou no país) como uma bomba, ou seja: os amigos e inimigos de Saramago vão aumentar em número. O escritor, ateu, tem contudo dedicado obras a diversas formas de reflexão sobre Cristo, a história sagrada, o papel devastador das religiões no mundo. Desta vez, porque a obra fora anunciada como se considerasse a Bíblia «um manual de maus costumes». Ora essa nota, sendo «apocalíptica», está afinal ainda longe quer das palavras dirigidas à imprensa por José Saramago e à essência do próprio livro. A reacção violenta da Igreja Católica, sendo esperada, foi em todo o caso de uma precipitação algo ingénua, pois ninguém, nas horas dessa expressão, lera o livro, o qual estava em distribuição pelas livrarias. Creio que a publicidade e aquela frase, além do historial crítico do autor, fizeram explodir a bomba antes de tempo, incentivando, paradoxalmente, a compra deste último livro de Saramago.
As palavras proferidas por José Saramago em Penafiel, domingo à noite, foram certamente decisivas. Esta minha «apropriação» da notícia e dos factos pretende apenas trazer para a reflexão um certo número de questões ligadas à Bíblia e aos credos religiosos. Vivemos numa época profundamente conturbada, outras o foram há muitos séculos atrás, e o papel que a Igreja Católica desempenhou na gestão de um imenso poder herdado da sua oficialização em Roma, por Constantino, modelou o mundo em termos por vezes monstruosos: as famosas Cruzadas não eram iniciativas inocentes e produziram catástrofez humanas indizíveis (embora Roma não tenha sido o seu comando directo), mas a nossa história e a nossa memória estão bem marcadas pelo brutalidade da Inquisição, abarcando poderosos e simples aldeãos, os países submetidos a um vasto mando sangrento, entre redes de culpadores e falsos culpados.
Mas demos a voz a José Saramago, Nobel da literatura: «...sem a Bíblia seríamos outras pessoas. Provavelmente melhores». Citando o artigo de João Céu e Silva, do Diário de Notícias, Saramago terá endurecido a voz depois das peimeiras considerações: «Não percebo como é que a Bíblia se tornou guia espiritual. Está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas» O escritor considera que «Caim» «é uma espécie de insurreição em forma de livro». Um trabalho de reflexão para outros reflectirem através dele. O problema vale o esforço dos leitores, mas, pela minha parte, continuo a entender que a escrita de Saramago, ao disciplinar-se, carpinteirada por «nivelamento», não nos arranca a entrega como acontecia nessa obra excepcional que se chama «Levantados do chão». O tema (e os temas assim desencadeados) exigiriam, sem barbarismo, algo que nunca se parecesse com um relatório. Ou então o mais estrito dos relatórios. «Nós somos manipulados todos os dias. - declarou o escritor - Temos de lutar contra isso» O problema não questiona Deus, «até porque ele não existe». O problema estende-se às religiões, «porque não servem para aproximar as pessoas nem nunca serviram».
Perante a atitude da Igreja, um outro comentário: «O que me surpreende é a frivolidade dos senhores da Igreja. Não leram o livro e vieram logo, com insólita rapidez, derramar-se em opiniões e desqualificações. Como falta de seriedade intelectual, não se poderia esperar pior. Compreendo que tenham de ganhar o seu pão, mas não é necessário rebaixarem-se a este ponto». Os comentadores da igreja entenderam como ingénua a leitura que Saramago faz da Bíblia: e ele responde «abençoada ingenuidade que me permitiu ler o que lá está e não qualquer operação de prestidigitação, dessas em que a exegese é pródiga, forçando as palavras a dizerem apenas o que interessa à Igreja. Leio e falo sobre o que leio. Para mistificações não contem comigo».
São, de uma forma geral e segundo a sua estratégia, pertinentes estas observações. O pior é que Saramago não deixa de criar divagações que facilmente se prestam aos tais ditos de ingenuidade ou de falta de capacidade para aprofundar os mitos, a sua natureza, e o espaço que abriam ou fechavam nas suas épocas de contexto. No meu livro «A Culpa de Deus» senti o peso dessa experiência, mesmo quando transcrevi alguns salmos à letra. Mas quem medita e escreve sobre esta problemática tem de contar com a poeira e os véus dos milénios. O meu problema era levar um personagem de cultura pluridisciplinar a visitar, sob vários critétrios que guardava para si, os lugares onde, dizia ele, havia mais probabilidade de Deus te deixado alguns sinais -- justamente os lugares da miséria, do sofrimento, da morte adiada. Quem fizer este exercício nunca pode convocar a Bíblia sem desmontar a ausência de sentido ou de respostas após cada inútil mortandade, que papel teria ocupado «naqueles tempos» tão continuadas e absurdas narrativas, horas da obediência à morte dos filhos em nome dos deuses, épocas onde os erros do mero mimetismo acumulavam os mais assombrosos genocídios. Em «O Evangelho segundo Jesus Cristo», o escritor pouco mais realiza do que transformar, em memória da Bíblia e dos Evangelhos, um personagem do seu próprio desejo, na sua invenção de maravilhoso sobre uma estrutura trágica e dearticulada. E, no entanto, o tema dos Evangelhos, esse sim, candente, contém matéria para desmentir, para revelar paradoxos e contradições, aliás num campo onde a linguagem de Cristo é matéria de questionação e de comparação com tradições a montante. Os Evangelhos não revelam nada, não servem para nada, apesar de alguma da sua poética e de frases atribuídas a Cristo lembrarem uma possível teatralização beckettiana. Cristo diz, plácido e maquinal: «Levanta-te e anda». Lázaro, morto, obedeceu, todos viram. Beckett, em «À Espera de Godot», repete a ansiedade de um personagem que queria sair do lugar onde esperava por «Deus» eternamente, sem que ele atendesse ao compromisso. O amigo do personagem fóbico. a cada proposta de partir («Vamos embora») apenas responde: Não podemos, estamos à espera de Godot».
Todos nós, afinal, estamos ainda naquela situação, esperando um sentido onde não há sentido nenhum, impotentes para travar a geminação sangrenta do poder religioso com o poder político. Deus poderá mudar de nome, mas a manipulação é a mesma para a qual José Saramago chama a nossa desamparada atenção. E não vale a pena perguntar, como Hitler sobre Paris, «A Palestina já está a arder?» Os que se fazem explodir na praça pública, talvez na mais horrível e demagógica forma de combater, acreditam nos sinais de Deus, decoraram os textos sagrados e entregam-se ao martírio poque já não conseguem ver o real à sua volta, porventura outra mentira que nos vem do ser e do nada.
Mas demos a voz a José Saramago, Nobel da literatura: «...sem a Bíblia seríamos outras pessoas. Provavelmente melhores». Citando o artigo de João Céu e Silva, do Diário de Notícias, Saramago terá endurecido a voz depois das peimeiras considerações: «Não percebo como é que a Bíblia se tornou guia espiritual. Está cheia de horrores, incestos, traições, carnificinas» O escritor considera que «Caim» «é uma espécie de insurreição em forma de livro». Um trabalho de reflexão para outros reflectirem através dele. O problema vale o esforço dos leitores, mas, pela minha parte, continuo a entender que a escrita de Saramago, ao disciplinar-se, carpinteirada por «nivelamento», não nos arranca a entrega como acontecia nessa obra excepcional que se chama «Levantados do chão». O tema (e os temas assim desencadeados) exigiriam, sem barbarismo, algo que nunca se parecesse com um relatório. Ou então o mais estrito dos relatórios. «Nós somos manipulados todos os dias. - declarou o escritor - Temos de lutar contra isso» O problema não questiona Deus, «até porque ele não existe». O problema estende-se às religiões, «porque não servem para aproximar as pessoas nem nunca serviram».
Perante a atitude da Igreja, um outro comentário: «O que me surpreende é a frivolidade dos senhores da Igreja. Não leram o livro e vieram logo, com insólita rapidez, derramar-se em opiniões e desqualificações. Como falta de seriedade intelectual, não se poderia esperar pior. Compreendo que tenham de ganhar o seu pão, mas não é necessário rebaixarem-se a este ponto». Os comentadores da igreja entenderam como ingénua a leitura que Saramago faz da Bíblia: e ele responde «abençoada ingenuidade que me permitiu ler o que lá está e não qualquer operação de prestidigitação, dessas em que a exegese é pródiga, forçando as palavras a dizerem apenas o que interessa à Igreja. Leio e falo sobre o que leio. Para mistificações não contem comigo».
São, de uma forma geral e segundo a sua estratégia, pertinentes estas observações. O pior é que Saramago não deixa de criar divagações que facilmente se prestam aos tais ditos de ingenuidade ou de falta de capacidade para aprofundar os mitos, a sua natureza, e o espaço que abriam ou fechavam nas suas épocas de contexto. No meu livro «A Culpa de Deus» senti o peso dessa experiência, mesmo quando transcrevi alguns salmos à letra. Mas quem medita e escreve sobre esta problemática tem de contar com a poeira e os véus dos milénios. O meu problema era levar um personagem de cultura pluridisciplinar a visitar, sob vários critétrios que guardava para si, os lugares onde, dizia ele, havia mais probabilidade de Deus te deixado alguns sinais -- justamente os lugares da miséria, do sofrimento, da morte adiada. Quem fizer este exercício nunca pode convocar a Bíblia sem desmontar a ausência de sentido ou de respostas após cada inútil mortandade, que papel teria ocupado «naqueles tempos» tão continuadas e absurdas narrativas, horas da obediência à morte dos filhos em nome dos deuses, épocas onde os erros do mero mimetismo acumulavam os mais assombrosos genocídios. Em «O Evangelho segundo Jesus Cristo», o escritor pouco mais realiza do que transformar, em memória da Bíblia e dos Evangelhos, um personagem do seu próprio desejo, na sua invenção de maravilhoso sobre uma estrutura trágica e dearticulada. E, no entanto, o tema dos Evangelhos, esse sim, candente, contém matéria para desmentir, para revelar paradoxos e contradições, aliás num campo onde a linguagem de Cristo é matéria de questionação e de comparação com tradições a montante. Os Evangelhos não revelam nada, não servem para nada, apesar de alguma da sua poética e de frases atribuídas a Cristo lembrarem uma possível teatralização beckettiana. Cristo diz, plácido e maquinal: «Levanta-te e anda». Lázaro, morto, obedeceu, todos viram. Beckett, em «À Espera de Godot», repete a ansiedade de um personagem que queria sair do lugar onde esperava por «Deus» eternamente, sem que ele atendesse ao compromisso. O amigo do personagem fóbico. a cada proposta de partir («Vamos embora») apenas responde: Não podemos, estamos à espera de Godot».
Todos nós, afinal, estamos ainda naquela situação, esperando um sentido onde não há sentido nenhum, impotentes para travar a geminação sangrenta do poder religioso com o poder político. Deus poderá mudar de nome, mas a manipulação é a mesma para a qual José Saramago chama a nossa desamparada atenção. E não vale a pena perguntar, como Hitler sobre Paris, «A Palestina já está a arder?» Os que se fazem explodir na praça pública, talvez na mais horrível e demagógica forma de combater, acreditam nos sinais de Deus, decoraram os textos sagrados e entregam-se ao martírio poque já não conseguem ver o real à sua volta, porventura outra mentira que nos vem do ser e do nada.
6 comentários:
Mais uma análise segura e cordata sobre um assunto melindroso porque toca os «intocáveis».
Saramago está numa posição confortável para dizer algumas verdades que logo fazem tremer e temer.
É muito difícil lutar contra este tipo de insanidades.
E a verdade sobre os Evangelhos que constam do ´Livro Sagrado' continua a ser escamoteada...
O livro de Saramago que ainda ninguém leu, surge numa altura em que o Homem está cada vez mais propenso à crença, um apelo a Godot esperando por algo ou Alguém que milagrosamente resolva os problemas do mundo: a tão afamada Crise. Logo, (por isto e pela paradoxal contribuição publicitária da Igreja) este livro tem grandes probabilidades de se tornar um best-seller. E não é preciso ser um Nostradamus para chegar a esta conclusão. Ignoro o teor deste livro, mas a avaliar pelo título e reacções clérigas, presume-se uma insurreição às religiões, em especial, a cristã. Caim, ao que relata a bíblia, é o primeiro filho de Adão e Eva (há quem acredite que a sua concepção deriva do relacionamento de Eva com a serpente), figura controversa e nada recomendável à moral e bons costumes, é símbolo de homicídio e incesto. Assassinou o irmão mais novo por ciúmes e na sequência, terá fugido e casado com sua irmã, uma filha anónima de Eva. Com os olhos postos nesta perspectiva, não é difícil imaginar de que forma Saramago ou qualquer outro escritor poderá utilizar tais argumentos numa peça literária. É legítimo que o faça, claro. Mas também não será menos legítima, a utilização de argumentos bíblicos que sejam a antítese dos acima enunciados. Não defendo religiões, mas sim a igualdade de direitos e critérios. A bíblia, acima de tudo, é um livro, um fantástico relato baseado numa verdade (NÃO da VERDADE), e como tal, sujeito a ficção e alterações ao longo dos tempos. O seu aproveitamento, foi sem dúvida apontado maoritariamente para fins negativos. Mas, a sua temática também influenciou milhões de pensadores, desencadeou inúmeras reflexões em grandiosos autores de maravilhosas obras literárias de carácter filosófico.
Um livro não pode ser moral ou imoral, tampouco um manual de maus costumes. Um livro pode ser bem ou mal escrito.
E este, à semelhança do que referiu Sartre no Ser e o Nada, é e será sempre: «um caso de ontologia fenomonológica».
Concordo com Saramago numa coisa:«sem a Bíblia seríamos outras pessoas».
Mas duvido que melhores.
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" Então, a Culpa não é de Deus? "
- Não, poeta.
A culpa não pode estar em algo que não existe. O problema em si, é criado no Homem.
" Não gosto de ser homem. "
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Um abraço,
Miguel
O Saramago disse um pouco mais, mas essa não é a questão fundamental, a questão é o que Saramago é, anedoticamente, inculto em teologia e história das religiões, e não consegue sair de um ateísmo atávico, que ainda toma o cristianismo católico como um «inimigo de classe», sem ter nenhuma da profundidade diagnóstica com que, por exemplo, Nietzsche aferiu a cristianização da civilização ocidental.
Reduzir textos com milhares de anos (a Canção de Débora, no Antigo Testamento, estima-se ter cerca de 3.500 anos e ser o documento escrito mais antigo da nossa civilização) a simples «mentiras» é infantil, além de que confunde religião (instituição religiosa) e religiosidade, Saramago não apanha um grão da incontornável (as civilizações não se reinventam anulando o que foi e supondo o que poderia ter sido, mas renovando os seus legados) importância do cristianismo (e de toda a religião) na edificação da civilização humana.
Estou à vontade para dizer isto, nem sou cristão.
Abraço!
P. S. Além de que sob o ponto de vista civilizacional, se Deus existe ou não é irrelevante. Nenhum crente tem essa certeza, mas essa esperança. E mesmo com «Deus morto», todas as civilizações humanas continuam sustentadas num chão religioso. É tão inútil combater isso como combater o Darwinismo. O caminho é impedir que toda a forma de estupidez e fanatismo destruam a civlização. Mesmo Marx viu alguma utilidade social (ainda que temporária) na religião... sem esse «ópio» como resolveríamos a angústia do homem comum, se nem duas refeições por dia conseguimos dar a todos os homens espalhados pelo mundo...
É preciso cautela com estes «queimadores de bíblias», na pressa de um «novo homem» esquecem o pobre desgraçado de todos os dias, que come batatas e bíblias, porque ainda não lhe podemos dar mais...
Já agora: perspectiva judaica esotérica.
Caim é filho do Anjo e de Eva, e não de Adão. O homicídio é-lhe ordenado, para que na prole adâmica se perpetue o «sangue» dos Anjos, forçados a abandonar o Éden e a humanidade.
Caim não foi uma criatura vil, muito pelo contrário. Foi um «construtor de cidades», simbolismo de protector dos homens e da civilização.
Quanto à «telenovela de famílias»... Caim tomou mulher, e não foi uma irmã. Adão e Eva e seus filhos nunca foram os únicos humanos; a sua «criação» é uma escolha: um par humano foi conduzido ao Éden para lhe ser ensinado a sabedoria.
A criação do mundo e do homem ocorreu muito antes. O período edénico corresponde ao da edificação da civilização humana, na antiga Suméria, cujos rios, Tigre e Eufrates, são indicados no livro do Génesis.
O Antigo Testamento pouco tem de fantástico, relata factos históricos, a maioria comprováveis... o cristianismo é que tem delirado um «bocadito» em cima dos textos sagrados.
P. S. Não me perguntem o que são os «anjos», mas posso garantir-vos que não são feitos de diáfano algodão doce e com asinhas...
Um resto de bom dia para todos.
Ainda não li o livro e por isso mesmo não posso emitir opinião mas uma coisa é certa: Saramago ganhou leitores e a Biblia também.
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