terça-feira, outubro 27, 2009

VISITAÇÃO À VOZ HUMANÍSSIMA DE LOBO ANTUNES

Lobo Antunes

Lobo Antunes, após ter publicado o seu último livro (Que Cavalos São Aqueles Que Fazem Sombra No Mar?), concedeu uma significativa e comovente entrevista a Judite de Sousa, na RTP1. Lento mas a paralisar todos os meus músculos, eu ouvia cada palavra e cada frase como a Voz mais profunda, simples, linear, inusitada, que o escritor terá comunicado em som e imagem. E era um homem brando, sereno, diferente, falando da sua doença e da dignidade dos que sofreram a seu lado, com a morte anunciada. O homem que soletrava lembranças há alguns anos, e a uma outra jornalista, era o mesmo e um outro. Dizendo, aliás, que passara a lutar por se conhecer melhor a si próprio. E falando da sua escrita, uma «pasta» de palavras que era preciso deslindar, arrumar de forma menos ruidosa no espaço, compr uma primeira página, compactar o livro, dá-lo ao mundo. «Depois de escrito e distribuído o livro já não é meu.»
Um homem que vive sem Deus e que se reune com amigos para falar das coisas que mais lhes interessa, significando o tempo e o espaço das formas faladas quase tudo o que já deixou de se dizer nos quotidianos pardos e na roda ensandecida da pequena política.



À pergunta sobre se a palavra vida é uma palavra justa para definir a sua relação com os livros e a sua relação com a escrita, Lobo Antunes foi considerando:
Nesse sentido posso aceitar a definição. De facto, ao longo da minha vida tenho sistematicamente cortado os pescoços que se interpõem entre mim e os livros, e às vezes tenho a sensação de ser uma galinha que protege os ovos. Os ovos neste caso são os livres, evidentemente. Os livros, o tempo para escrever e a disponibilidade para isso.
Uma questão de método, a entrega, a precisão e o tempo:
Sabe, quando estou com um livro, é uma questão de método. Sempre. Começo às nove e meia/dez horas, acabo à uma, recomeço. E isto todos os dias, até o livro estar pronto.
Isso não é muito esgotante?
Não. O que é mais esgotante são os intervalos entre os livros. Não sei se vou ser capaz de escrever outro livro... porque os livros não são feitos pelos outros; pelo menos nos meus não tenho a inteira convicção de ser o autor deles. Outro dia, por exemplo, eu estava cansado, tinha escrito durante muitas horas. Fui à estante e tirei um livro ao acaso. Era «Os Tempos Difíceis», do Dickens... abri o livro, assim, da mesma forma, e a certa altura de um diálogo espantoso, de duas ou três linhas, na altura em que o filho vai visitar a mãe, já velha e doente, muito doente, e lhe pergunta: «tens dores, querida mãezinha?», e ela lhe responde: «tenho a impressão de que há uma dor aí, pelo quarto, mas não sei se me pertence.» Isto é verdadeiramente espantoso. O acto de escrever, agora, é um pouco parecido com isto: dá a sensação de que há um livro por aí, mas não se sabe exactamente se nos pertence»


Sobre a escrita, a folha em branco, sofrer a escrita:
Sim, representa uma certa sensação de sentimentos misturados, sofrimento, alegria, júbilo, desânimo, descrença. Mas não deixa de ser, é evidente, um trabalho agradável. (...) Na primeira versão, a sensação que tenho assemelha-se a uma estátua enterrada no jardim, é preciso cavar a terra, tirar a estatuetazinha, depois limpá-la da sujidade, dos insectos mortos, das folhas podres, até aquilo tomar a forma de um livro. A segunda versão é um magma que tem de ser muito bem trabalhado».
Sobre o tempo para a leitura em tais períodos:
Leio todos os dias, sim, para aprender. Eu continuo sem saber nada do que é escrever, e tenho a impressão, quando estou a escrever, a trabalhar, de me parecer que sou uma criança cega, a tropeçar às escuras num caminho que não conhece.»


Saber escrever, o orgulho de escrever, que modéstia?
Não tenho modéstia, acho que tenho um orgulho humilde. Quando recebi um importante prémio, em Jerusalém, era preciso fazer um discurso, a incluir num livro (...) O que me veio à cabeça, para acabar, foi uma carta de Newton (que mudou a nossa vida e a própria concepção do mundo: ele descobriu a identidade na diversidade, descobriu que a lua não cai e a pedra que cai são o mesmo fenómeno, e isso modificou por completo o nosso conceito de tempo, abrindo caminho a toda a grande física moderna, todos os avanços a partir do século XIX, Eintein, Max Planck, outros, muitas vias foram descobertas. No fim da vida ele (Newton) escreve a um amigo, mais ou mens assim: «não sei o que o futuro pensará de mim, na minha opinião fui apenas uma criança a brincar na praia que encontrou o seixo mais bonito, a concha mais colorida, enquanto o infinito oceano da verdade continua intacto diante de mim. (...) No fundo, porque uma pessoa escreve? Por um lado, para se conhecer melhor a si mesma e aos outros, por outro lado porque a arte, apesar de tudo, talvez seja a forma suprema de dignificação do homem. A nossa única possível vitória sobre a morte.»


foto citada. A preto e branco, do autor do blog

As citações da entrevista concedida por Lobo Antunes são uma breve parte do conjunto, peça verdadeiramente excepcional e assinalável pela sua humanidade e pela beleza de cada pronunciamento sobre os homens, os amigos, a «sagração» da mãe. Alguns cortes ou muito escassas «mudanças» devem-se apenas às condições de legibilidade neste espaço e nestas condições.

1 comentário:

Miguel Baganha disse...

«...a arte, apesar de tudo, talvez seja a forma suprema de dignificação do homem. A nossa única possível vitória sobre a morte.» - Isto, é para cá do mais, uma forma inequívoca de eternidade dentro de si.
A tal "Eternidade Cá Dentro" a que refiro na minha última edição.

No entanto, sei simultâneamente, que o Tempo é a única coisa perene. Um caminho por onde a humanidade passa escrevendo histórias sobre Coisas cujo nome nem sempre lhes corresponde.
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O excerto que se segue é extraído do livro "BELAS-ARTES E SEGREDOS CONVENTUAIS", por ROCHA DE SOUSA:

«Quando a Ana me entregou os documentos de reserva, a comprovação dps direitos da nova graduação que me era atribuída e a caderneta com a história militar salpicada de fungos, o Chiado tornava-se sombrio, dias depois praticamente inacessível. Em casa limpei o bolor da reforma, um razoável volume de papéis inúteis e viajei pelas estantes procurando um livro raro. Via da janela pétalas no ar e borboletas caindo, e mais tarde, sem luz solar, os carros rolando devagar, entalados no triunfo do século, da sua tecnologia, do seu crescimento, entre desenvolturas várias. Eu associava essa imagem Felliniana ao horror de muitas premonições apocalípticas. Sentia-me ao mesmo tempo liberto, atravessao por brisas refrescantes, apesar de um leve enjoo que se anichara no meu estômago. Saíra da Faculdade sem me preocupar com as coisas que por lá acumulara, abandonadas em velhos armários de madeira preciosa. Um dia tudo acabaria, em bolor e pó, nos armários do sotão. sentei-me por fim, fumando um cigarro, e pensei devagar:ninguém deu por nada, felizmente.»
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- Afinal, a palavra às vezes pensa a imagem, meu bom amigo. E esta que encerra o seu livro é um assombro!

Penso que seria bom para o mundo, se ele lesse os seus livros.

Um grande abraço