A vida é feita de uma falsa continuidade e a arte procura alcançá-la com propriedade de sentido e valores expressivos de diferente projecção no espaço perceptivo de cada um de nós: porque somos dotados de um sistema visual de grande resolução objectiva, revestindo-se de notória propriedade na absorção do real, apesar de depender de um conjunto de regras redutoras da natureza integral dos objectos percepcionados. A resolução das imagens no cérebro permite-nos nomear conceptualmente as coisas e colar a elas um saber plural, capaz de descodificar uma aparência e oferecer à vigília consciente a forma tridimensional da coisa vista, guardando dela e do próprio espaço envolvente o significado inteiro, grande parte das informações aí achadas. Esta questão tem de ser ajuizada convenientemente nos actos de reresentação do visível, quer pelo desenho ou pela escrita alfabética, entre muitos outros géneros de instaurar discursos artísticos, como nas artes plásticas, no cinema e na fotografia, na poesia ou na literatura em geral. A arte contorna as evidências (porque elas encobrem de certa maneira o real) a fim de tornar visível cada parte registada pelo olhar e pelo fundo enganador da visão. Em certo sentido, já tem sido dito que a arte transforma as aparências (mentindo) para as dar a ver com mais verdade. Estas notas ocorrem-me a propósito de uma estranha controvérsia gerada a partir da reacção dos militares, sobretudo declarada pelo Presidente da Associação dos Ex-Combatentes. O alarido tomou conta de muita gente, uns que defendiam o escritor e outros que o julgavam pela negativa, considerando parte de uma peça inserida no 2º livro de crónicas de António Lobo Antunes. E há quem, nessa ira, se esqueça do atroador «Cu de Judas», uma das primeiras obras daquele escritor sobre a guerra de Angola, testemunho magoado e nada louvando, peça que muitos de nós leram com um nó na garganta. O problema, desta vez, é que a frase mais destacada do protesto, parece mesmo, antes de qualquer literatura declarada, um outro testemunho, laminar, decisivo, destituído de ficção ou simbologia -- a verdade apenas, por mais absurda que a pequena história se apresente. Ao contrário do que costuma acontecer nas crónicas de Lobo Antunes, cujos textos surgem quase sempre orvalhados de um segundo sentido, entre símbolos e metáforas finais, a crónica apontada contém um período tão limpo como a verdade da própria verdade. Escreveu, a certa altura, Lobo Antunes: «Eu estava numa zona onde havia muitos combates e para poder mudar para uma região mais calma tinha de acumular pontos. Uma arma apreendida ao inimigo valia pontos, um prisioneiro ou um inimigo morto outros tantos pontos. E para podermos mudar, fazíamos de tudo, matar crianças, mulheres, homens. Tudo contava e, como quando estavam mortos valiam mais pontos, então não fazíamos prisioneiros».
Trata-se, com efeito, de uma implícita afirmação de grande gravidade. Também estive em Angola, mais ou menos na mesma altura, em Zala e Nambuangongo, onde perdemos vidas, mas a guerra ainda não adquirira o grau de sofisticação para provocar tais «ajustes de contas». Vinte anos depois de ter regressado de África, escrevi um livro a que chamei, talvez impropriamente, «Angola 61, crónica de guerra». O livro só será crónica porque todos os factos e pessoas nele abordados correspondem à pequena e grande história do batalhão, embora transmitidos por uma forma literária a lembrar a expressão ficcional, incluindo um forte apelo ao cinema. Mas há nele denúncias aterradoras, como tenho lido noutros textos e, em particular, na obra de Lobo Antunes, a que toca militares e a que não toca. Mentiras dizendo verdades cortantes, da guerra à Inquisição e a muitos outros estados de várias idades históricas do nosso país. Um colega amigo, a propósito do assunto aqui abordado, chamou-me a atenção para o lado gélido, como que imparcial ou neutro, da redacção daquele parágrafo de Lobo Antunes: o desinteresse pela forma literária, assaz mal falada, e o batimento seco e sintético dos factos e dos métodos com que eram contabilizados. Para este meu amigo, trata-se de um forte indício de que o escritor testemunhou aquele procedimento, quase impensável, mesmo para quem esteve na guerra colonial, ou através da filmografia sobre o Vietnam. Mas nada disto é assim tão simples e o problema (visto que tantos outros foram deslidos) parece residir no facto aparentemente institucional em si, difícil de esconder dos não alinhados ou dos oficiais da companhia. Até porque, num outro ponto da crónica, Lobo Antunes declara que pertencia a um batalhão de 600 homens, dos quais morreram 150, percentagem altamente desajustada de todas as estatísticas conhecidas, entre as mais isentas. Aliás, o escritor acedeu a desfazer esse eqívoco em carta para o Presidente dos Ex-Combatentes, carta onde não explica a questão dos espólios e dos pontos; porque sempre disse que a escrita dele só pode ser lida como expressão simbólica, mesmo nos eventuais eventos que decorram de factos presenciados. Isto é verdade que nos acontece; e Lobo Antunes, apesar de tudo, não estava ali a escrever um relatório para enviar a um qualquer chefe do Estado-Maior. Feitas estas distinções e abertas estas disponibilidades de circulação pelo sentido da obra de Lobo Antunes, aquela e outras do mesmo índice de acutilância, atrevo-me, sem querer assumir-me como advogado de defesa de um escritor que muito admiro, a adiantar mais duas ou três questões de valor substantivo: a) Em Angola, anos 60, uma companhia era constituída por 3 grupos de combate, cerca de 160 homens, entre soldados, cabos, sargentos, alferes, um tenente e um capitão, comandante da unidade. O tenente em geral era o médico, e os alferes milicianos concretizavam a cadeira superior hierárquica, com vértice no capitão. Os sargentos comandavam secções de 9 homens, integrando o grupo de combate. O problema posto pelo texto de António Lobo Antunes, enfrenta os seguintes (possíveis) problemas: ou o sistema de pontuação por acções desenvolvidas em combate e similares situações era circunscrito a um grupo de pessoas, secreto, e nesse caso a transferência do que mais pontuasse seria negociada por subterfúgios, ou esta roleta implicava toda a companhia, facilitando a transferência do vencedor para uma «unidade pacífica», o que coloca dentro da sigilosidade da operação toda a gente, desde o capitão ao último dos soldados. Apesar de tudo o que me foi dado ver, negociatas, abastecimentos directos e sem a menor transparência, escolhas de materiais passando por percentagens, desgaste não explicado nos géneros entregues às companhias, promiscuidade entre militares e civis em preparações especiais de aquartelamentos, pressão disciplinar sobre aqueles que não acatavam trocas obscuras entre chefias consoante interesses pessoais e vantagens financeiras, violência aplicada a dois prisioneiros, a verdade é que nunca estive perante situações tão abjectas quanto as referidas por Lobo Antunes. Podemos duvidar delas na base de um raciocínio técnico como aquele que sintetizei atrás, mas não podemos condenar o seu relato, mesmo que em relação directa com a realidade passada. Porque o contexto, o género da crónica, absorvem o significado dos conteúdos para o domínio do símbólico, da analogia com outras possíveis crueldades, em metáfora capaz de desmontar o real e a sua verdade numa outra verdade. Em termos litrários, Lobo Antunes pode ter-se socorrido de um jogo promocional cruel para dizer outras verdades, assinalando a brutalidade de muitos meios bélicos, aceites como norma. O próprio treino militar, antes de qualquer prontidão, chega a ser cínico e bárbaro, e bem me lembro disso em Mafra. Já não falo das mortes de jovens em instrução militar ligada aos comandos nem da criação de sistemas de dependência psicológica.
Resta talvez anotar que a forma dos artistas se assumirem como testemunhas empenhadas perante desvios sociais, políticos, religiosos, militares, seja qual for o grau de possível sanção (ilegal) que as corporações accionem contra eles, tem sido entre nós muito pobre. Há mais casos na literatura do que nas artes plásticas, e há uma infinidade de documentos expressivos em cinema, com graus aterradores de verosimilhança perante casos históricos amplamente conhecidos. De resto, quem são os portugueses ainda vivos, participantes sem escolha numa guerra dita colonial com 14 anos de extensão, que não tenham percebido como esses milhões de factos e resíduos traumáticos foram omitidos até ao maior dos desrespeitos por um povo assim sacrificado, com muitos dos seus mortos enterrados no teatro de operações e que só agora, lentamente e sobretudo pelas famílias, começam a ser resgatados, em recato, sem pompa nem circunstância. Todos as pequenas intrigas futebolísticas com que as televisões nos intoxicam sem medida, entre outras coisas idênticas, deveriam desde há muito ter sido substituidas em parte por debates, revelações, a história da guerra travada teimosamente por Portugal em Angola, Moçambique e Guiné. Muitos ainda esperam por isso, mas só lhes cabe ouvir as migalhas de programas com filmes de arquivo e testemunhos de patentes superiores. A guerra não foi nada disso. E Lobo Antunes, que era tenente miliciano no teatro de operações e sabe que não é preciso mentir num universo com tantos exemplos reais para abordar, tem de facto razão quando lidera frases assim: eu poderia escrever que na minha companhia, formada por 150 homens, morreram 150; e no batalhão, de 600 homens, morreram também todos eles, isto numa forma de exprimir que ninguém se salva após tão terrível experiência. O escritor, na correspondência travada com o Etado-Maior, diz que quanto mais simbólica é a linguagem mais verdadeira se torna. E asseverou que o tema acarreta «reacções emocionais fortes», até porque «a guerra colonial foi profundamente injusta. Pode esquecer-se a guerra mas ela não nos esquece. Deu cabo da nossa juventude e há-de dar cabo da nossa velhice. A negação de nada serve e a guerra continua a ser uma experiência muito dolorosa para mim. Quando venho de um almoço com os meus camaradas, essa noite é muito difícil. Todos nós morremos um bocadinho na guerra».
foram consultados materiais publicados no blog de ALA e por José Roldão
1 comentário:
Os artistas são meros condutores da expressão, social, religiosa ou política, que contornam verdades para tentar dizer (demonstrar) a sua própria verdade. Isto talvez explique, de forma linear, uma das célebres frases de Picasso:"A arte é a mentira que nos permite conhecer a verdade". Poderia ficar aqui, na eternidade possível, a esgrimir (comigo mesmo) sobre a verdade e a sua real aparência, mas isso só serviria para plastificar ainda mais a coisa em si e nada mais: correndo interminavelmente atrás da metafísica mas sem resultados frutuosos no sentido pragmático da questão.
Aqui, o que convém evidenciar é o facto de Lobo Antunes nunca se ter afirmado como jornalista mas antes como um escritor de ficção.
A questão de "mentira" ou verdade "falseada" aqui não se coloca, uma vez que a sua condição, ao contrário de um jornalista, lhe permite ficcionar sempre que achar necessário. E isso é um direito que assiste qualquer artista - tal como Goethe disse um dia:"A obra de arte pode ter um efeito moral, mas exigir uma finalidade moral do artista é leva-lo a arruinar a sua obra".
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João, mais uma vez, o texto aqui apresentado é fora-de-série, na forma lúcida, pertinente e objectiva como explica um tópico que vai além da simples crítica literária.
Destaco a parte do seu texto que refere alguns problemas da medíocre mentalidade social:
«Resta talvez anotar que a forma dos artistas se assumirem como testemunhas empenhadas perante desvios sociais, políticos, religiosos, militares, seja qual for o grau de possível sanção (ilegal) que as corporações accionem contra eles, tem sido entre nós muito pobre. Há mais casos na literatura do que nas artes plásticas, e há uma infinidade de documentos expressivos em cinema, com graus aterradores de verosimilhança perante casos históricos amplamente conhecidos. De resto, quem são os portugueses ainda vivos, participantes sem escolha numa guerra dita colonial com 14 anos de extensão, que não tenham percebido como esses milhões de factos e resíduos traumáticos foram omitidos até ao maior dos desrespeitos por um povo assim sacrificado, com muitos dos seus mortos enterrados no teatro de operações e que só agora, lentamente e sobretudo pelas famílias, começam a ser resgatados, em recato, sem pompa nem circunstância. Todas as pequenas intrigas futebolísticas com que as televisões nos intoxicam sem medida, entre outras coisas idênticas, deveriam desde há muito ter sido substituídas em parte por debates, revelações, a história da guerra travada teimosamente por Portugal em Angola, Moçambique e Guiné. Muitos ainda esperam por isso, mas só lhes cabe ouvir as migalhas de programas com filmes de arquivo e testemunhos de patentes superiores. A guerra não foi nada disso. E Lobo Antunes, que era tenente miliciano no teatro de operações e sabe que não é preciso mentir num universo com tantos exemplos reais para abordar, tem de facto razão quando lidera frases assim: "eu poderia escrever que na minha companhia, formada por 150 homens, morreram 150; e no batalhão, de 600 homens, morreram também todos eles, isto numa forma de exprimir que ninguém se salva após tão terrível experiência." O escritor, na correspondência travada com o Estado-Maior, diz que quanto mais simbólica é a linguagem mais verdadeira se torna. E asseverou que o tema acarreta "reacções emocionais fortes", até porque "a guerra colonial foi profundamente injusta. Pode esquecer-se a guerra mas ela não nos esquece. Deu cabo da nossa juventude e há-de dar cabo da nossa velhice. A negação de nada serve e a guerra continua a ser uma experiência muito dolorosa para mim. Quando venho de um almoço com os meus camaradas, essa noite é muito difícil. Todos nós morremos um bocadinho na guerra".»
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