sexta-feira, outubro 07, 2011

ARRUMAR O IMPÉRIO NUM CAIXOTE DE RETORNO



Dulce Maria Cardoso

Vinte anos depois de ter passado à «disponibilidade», entre as primeiras tropas regressadas de Angola, reuni apontamentos tomados nas viagens pelos Dembos, apontei a memória a tudo o que estava então bem arrumado no meu espírito, escrevi o livro «ANGOLA 61, uma crónica de guerra» e a "Contexto" arriscou a publicação, numa altura em que havia ainda poucos testemunhos daquela terrível descida aos infernos, a despeito da sua beleza, com excepção da inicial prestação escrita de Lobo Antunes. Eu já tinha, portanto, assistido ao regresso compulsivo das populações das colónias, a famosa ponte aérea, os dramas e as tragédias daqueles que chegavam todos os dias, muitos esperando porventura os caixotes enviados por via marítima, cidade de madeira que tantas vezes visitei em Alcântara. Dulce Maria Cardoso decidiu uma aventura ainda mais densa, baseada também nas memórias e no sofrimento daqueles tempos, pois agora, 40 anos depois (embora haja escrito outras peças de verdadeiro interesse testemunhal e literário), publica O RETORNO, o «primeiro caso sério de reflexão literária sobre os 500 mil retornados que aterraram em Portugal em 1975.» Vinda de Angola, a escritora foi um desses retornados, mas neste seu livro não pretende «um ajuste de contas» com o passado. José Riço, no «Público», anota que a escritora, noutro sentido, talvez procure um ajuste de contas com a sua própria obra, a anterior. Citando Dulce Cardoso, sente-se o que já muitos disseram, de outros modos: «Era-me muito penoso visitar o passado. Eu vivi parte dos acontecimentos que a personagem principal narra, portanto tive de revisitar esse passado, e também o outro que ia descobrindo. E isso magoava-me. Mas não era isso que me impedia de escrever. O que impedia era não ter encontrado uma proposta de reflexão. Foi um tempo de muito sofrimento para muita gente, e eu não queria usar o sofrimento sem que a ele estivesse associada uma proposta de reflexão».
O problema aqui enunciado pela escritora foi também sentido no meu caso: só vinte anos depois é que tudo ficou claro, certos acontecimentos transformada em alegoria, o visível e o invisível no bater dos corações sob o medo e um dia sob a melancolia das distâncias relembradas. Quanto à entrevista concedida por Dulce Maria Cardoso ao jornal «Público», não é fácil segui-la sem voltarmos a sentir nas mãos o pó das picadas e na memória as imagens multirraciais que povoavam, em gritaria de crianças brincando, as cinco estrelas do Altis.

1 comentário:

Miguel Baganha disse...

20 anos, 40 anos ou até mesmo uma vida inteira se revela, por vezes, insuficiente para cicatrizar certas feridas. Mas, afinal o que é uma vida inteira?