segunda-feira, junho 11, 2012

NA MORTE DE MARIA KEIL FICAM OS AZULEJOS

Maria Keil do Amaral /1914

Uma das mulheres portuguesas que dedicou às artes grande parte do seu talento, deixou obras urbanas de grande adequação, na época e na arquitectura: esta artista morreu ontem, cumprindo uma longa vida e desenvolvendo formas de arte integrada, parietal, em cerâmica e azulejo. Viveu com um homem, Keil do Amaral, arquitecto, cuja obra exerceu sem dúvida forte influência sobre esta pintora, nascida em Silves, minha terra natal também. Esta pintora, que colheu no espaço urbano e arquitectural, bem como na geometria aplicada aos modos de formar nas artes plásticas, o melhor da sua modernidade serena, entre a memória do mar, gente do litoral piscatório, velas a caminho da barra, mar picado, conchas e outros indícios da vida marinha — contos meridionais e outros que acompanham gares do metropolitano de Lisboa e muros interiores ou exteriores onde a pintura em azulejo humaniza e ornamenta o espírito dos espaços.


Maria Keil (ou só Maria como gostava de ser tratada) partilhou grande parte da sua vida com o arquitecto Francisco Keil do Amaral. A sua obra é extensa, muito diversificada, mal louvada pelos críticos do óleo e tela, e sempre estudou a modernidade através de sínteses figurativas ou modelos construtivistas abstractos. Trabalhou muito na ilustração, aliás de forma admirável e pedagógica, tanto para adultos como para crianças.
Para a história da sua arte, importa sobretudo assinalar o estudo e a bela produção de pintura parietal em azulejo. Ergueu milhares de peças desse género, espalhadas pelo país, incluindo painéis monumentais. Acedendo à exclusão figurativa que se travava na época em Portugal, Lisboa sobretudo, estudou a padronização rítmica para os azulejos do Metro, onde talvez se escondam algumas figuras, e donde recebeu os efeitos do desajuste financeiro da Empresa, a qual nem os azulejos parecia disposta a pagar. Mas o trabalho, executado na «Viúva Lamego», é uma grande contribuição para o património da cidade. Parecerá estranho o que Portugal continua a fazer com os seus artistas, premiando a futilidade e a espectacularidade: de facto, pagos os azulejos, todo o trabalho de excelência de Maria Keil foi entregue de borla. Para que  os lobos não infestassem a raridade do monumento, ou porque Maria funcionava assim mesmo, foi possível ler na altura: Maria Keil decidiu oferecer o seu enorme trabalho à cidade de Lisboa e a seu «jovem» Metropolitano. Valeria a pena saber como entendem as instituições públicas artistas como Sarmento, Joana, Cabrita Reis — muitos dos que ganharam quase de súbito projecção remunerada.

grelhas cerâmicas

padrões de superfície
e trabalho ornamental de interiores


Maria Keil foi pintora, ilustradora e ceramista portuguesa. Frequentou a Escola Superior de Belas Artes de Lisboa. Casou aos 33 anos com o arquitecto Francisco Keil do Amaral. A obra desta artista é plural nos meios e coerente nos meios e nas escritas. Pintou naturezas mortas e retratos, tendo feito parte do Pavilhão de Portugal na Exposição Internacional de Paris. Até aos anos 40 participa em várias exposições colectivas e expõe individualmente, em especial com desenho e pintura. Participou na Exposição do Mundo Português com uma pintura mural. Trabalhou em publicidade, com Fred Kradolfer, José Rocha, Carlos Botelho e Bernardo Marques. Foi Prémio Revelação Amadeu de Sousa Cardoso com «auto-retrato». Trabalhou  arduamente para o Metropolitano de Lisboa (50 a 60), desenvolvendo intensa pesquisa e produção como criadora de painéis de azulejo, numa altura em que havia ainda preconceito contra esse meio. A ela se deve a recuperação, em espaços públicos, do azulejo e em contra-corrente. Alcançou grande prestígio neste domínio, tendo trabalhado para 19 estações do Metro e assim fez renascer a Viúva Lamego. O seu reconhecimento artístico e público através destes e outros trabalhos não cobriu de vergonha a direcção do Metro de Lisboa, na altura, fugindo ao pagamento da obra artística. Como terá sido com os esplendores das mais recentes estações, sumptuárias e dadas a vários artistas? 
Maria Keil participou em diversas exposições em Portugal e no estrangeiro. O museu do Azulejo dedicou-lhe uma retrospectiva, marco importante de uma arte que está longe de mobilizar o país, arquitectos e faculdades de Belas Artes. Maria Keil, aos 80 anos, ainda explorou a fotografia, expondo sob o tema «Roupa a Secar no Bairro Alto». Foi uma artista de grande seriedade e muito trabalho, enquadrando no espaço ornamentos de subtil modernidade. Era simples e sincera.

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

Bonita homenagem a Maria Keil. Ficam os seus azulejos, que vivem espalhados no coração urbano. Um legado vísivelmente visto. Por aí.

Anónimo disse...

As Artes nacionais são muito ricas e diversificadas, fazendo cada vez menos sentido distinguir as artes pela sua "nobreza" ou origens mais ou menos nobres, e a prova é que há lugar para a erudição em todas as áreas, do artesanato às artes digitais. Claro que estas distinções têm origem em interesses corporativos e comerciais, a maior parte dos critérios de "qualidade" artística são definidos de acordo com estes interesses, que são igualmente os mais "historiáveis", de mais fácil registo histórico. Mas à conta desses interesses nem sempre justificáveis, muitos artistas com obra interessante e de vulto vão ficando de parte, ignorados ou esquecidos. Espero que Maria Keil, que trocou a pintura de cavalete pela pintura de azulejo, não seja mais um deles, que a artista possa ser recordada e a sua obra revisitada – em Canas de Senhorim, por exemplo.

Sérgio Reis