sexta-feira, junho 01, 2012

MENINO MORTO POR VIRUS, TESTEMUNHO HOJE


A morte é assim, também guarda os seus patrimónios. Os mais antigos, os mais singulares na escassez da exemplaridade do céu e da terra. Esta criança, por exemplo, quase mumificada, assim conservada pelo frio das montanhas, tornou-se uma hipótese testemunhal trinta mil anos depois. Morreu de morte natural, atacada por um vírus cujo ADN foi possível decompor e classificar, tendo sido descoberto que tal agente patogénico já existia naquele tempo, era mortal, e ainda se faz sentir nos nossos dias, embora condensado numa das vacinas usadas e portanto praticamente inutilizado para matar crianças sub-alimentadas e alguns meninos contemporâneos, correndo os riscos da obesidade.
Olho para esta imagem, lindíssima na sua enganadora fealdade, e penso como terá sido frugal (também) a sua história. Alguém tratou dela, em parte, e procurou suavizar a sua viagem, não se sabe para onde. Os tecidos espessos encobrem todo o corpo e há um resto de cabeça que ainda parece capaz de nos olhar. Aqui, contudo, já não existe ninguém, existem peças estruturais do corpo, a despeito da fascinante presença dos resíduos. Milhares de anos depois de uma morte, se o corpo não for destruído pelo fogo, como acontece hoje por moda e falsas razões de espaço. São sobretudo razões financeiras e culturais, e as cinzas da cremação acabam depositadas numa simples caixa, mais ou menos adornada e luxuosa. As liturgias modernas, anexadas ao bom tom de uma certa poética, levam a que muitas famílias despejem as cinzas dos seus mortos sobre a terra de origem, ou na corrente de um rio amado, ou no oceano onde o sujeito terá tido prazeres de juventude e de pujança física, nadando em bom estilo e posando na areia, depois, os seus belos músculos molhados.
Nada disto tem importância, obviamente, mas é possível questionar as escolhas. Congelados na terra e na urna de madeira dura, os meus parentes serão agora ossos sem qualquer metafísica. Mas são dados (como na arqueologia) existentes que se podem investigar, saber a história de um tifo a que se escapou ou os sinais de anomalias que explicam a tristeza dos passos.

3 comentários:

End Fernandes disse...

Talvez nao queiramos mais deixar rastros... O ser humano vem cada vez mais desaprendendo a lidar com despedidas, e a morte é uma delas...

jawaa disse...

Deixar rastos... para quê?
Tenho meu irmão (e meu pai) em caixão de chumbo e incomoda-me hoje esse facto.
Como se estivessem presos para sempre.

Maria João Franco disse...

Surpreendente esta análise.
Reduzidos a cinzas,as histórias várias ficam por contar...