terça-feira, novembro 18, 2014

A GLOBALIZAÇÃO TOTALITÁRIA E A SACRA DÍVIDA


I


Spielberg, no filme "Inteligência Artificial", procura abordar o comportamento humano, sobretudo quanto à invenção e ao poder, entre sentimentos de pertença, de género, assaz pelas vias da paixão, da vida e da morte eterna. Um absurdo excesso de produção dirigido a supostas necessidades de apoio à vida quotidiana das pessoas -- tarefas assistidas, as razões do amor, o peso da solidão, os hábitos comuns de passear o cão ou consumir uma enorme quantidade de minudências -- acabou por encher as sociedades de robots figurativos, homens, mulheres, crianças; bonecos, enfim, capazes de se confundirem com pessoas reais, embora dados a especialidades diversas, na cozinha, no jardim, na cama, na leitura, no tratamento certeiro das limpezas ou da educação canina. David, criança, era justamente a mais perfeita criação da indústria robótica, com um notável software, chegou a ser contrariado pelo filho da sua dona, a mãe. Mãe que não suportou a situação, acabando por abandonar David, mergulhando-o numa dolorosa deriva de procura de si mesmo, tentando ser uma criança real, condição para o amarem de verdade. Viveu assim a tormenta de passar a pertencer a um mundo de biliões de seres mecânicos, desempregados, ultrapassados por novas séries, sendo cada vez mais combatidos por uma parte dos homens e das mulheres que os acusavam de contribuírem para a dissipação da raça humana, dominando por fim as nações e destruindo assim a própria História. Com meios brutais e afinal rudimentares, esta parte da humanidade edificara "feiras da carne", caçavam milhares e milhares de humanos mecânicos para os destruir, despedaçando-os e atirando-os para enormes lixeiras.
David procura então, fugindo a tudo isso, uma Fada que (diz a lenda) pode tornar uma criança da série "MEC", por exemplo, em criança real. Teoricamente, qualquer robot é eterno, como a Fada Azul, e David  atravessa o mundo para descodificar tudo o que o impede de chegar à Fada mágica. Não tem resposta concreta, embora haja cumprido todos os passos da mitologia, e soçobra num tempo de 2.000 anos, sendo depois despertado por uma outra gente que habitava então o planeta Terra. Ao ser-lhe mostrada a mãe, oferta alucinatória que durou apenas um dia, David vê a mãe adormecer (morrer), adormecendo também, não alienado, humano, o primeiro robot que abdica da vida perene para morrer de facto, mas provando o sentimento de ser amado pela mãe que ousara conhecer e amar.






II

É tempo de pensarmos um pouco nesta poética naif para conseguirmos equacionar o espaço das nossas dependências, do nosso aprisionamento pelas tecnologias de ponta, vítimas de olhadores e ouvidores estatais, obrigados a consumir milhares de coisas inúteis, ou feitas para a criação de novas necessidades, assim amarrados e amordaçados às dívidas, ao excesso de escolhas, ao Big Brother, à grande e totalitária dívida.



Edward Snowden

Julian Assange

Estes são dois personagens relevantes de uma luta contra a alta espionagem, neste caso nomeadamente nos Estados Unidos. Porque Snowden acedeu a milhares e milhares de informações classificadas naquele país, revelando depois uma grande parte delas. Mas este fenómeno, sobretudo com a chamada competitividade da Globalização, cresce por toda a parte e das mais sofisticadas vias técnicas e/ou estratégicas. O que importa (não sabemos se evocar aqui alguma ética) é denunciar um crescente acesso às grandes manobras e projectos, às pessoas de grande relevo, embora tal manobra também se estenda a pequenos actores e famílias por todo o mundo. Edward acabou por ser acolhido na Rússia, enquanto Assange se recolheu, daí missionando  sobre esta matéria, na Embaixada do Equador em Londres. Falou há dias, em video-conferência, no Centro de Congressos do Estoril. Sobre esse facto O "Público" publicou um artigo de Kathleen Gomes: "A Missa de Domingo de Julian Assange".
Citação do texto: «Anti-capitalista e anti-autoritário, o fundador da WikiLeaks comparou as actividades de vigilância de agências secretas como a NSA às práticas levadas a cabo pela Stasi, a polícia política da ex-RDA (Alemanha de Leste, sob influência soviética). Mas os governos não são os únicos culpados. Companhias das áreas da informática tornaram-se aliadas, agentes privados cujo trabalho importa à máquina do Estado norte-americano. (...)» Quando as pessoas dizem: «Não tenho nada a esconder, porque é que hei-de preocupar-me com isso?», a nossa resposta deve ser: «o que há de errado consigo, se não tem nada a esconder? Deve ser uma pessoa incrivelmente aborrecida. Por favor, trate já de procurar qualquer coisa que tenha de esconder».
De facto. Parece estranho, entre tanto lucro sombrio, tanta miséria, haver gente limpa. E depois? Como viveriam  as grandes indústrias do segredo e da informação? Acabaria o mundo, que acabará depois do «Interstellar».
Pediram a Assange para prever o futuro:
«Para mim a questão é como evitar o totalitarismo. Com os avanços tecnológicos estamos muito rapidamente a chegar a um nível de centralização global, com muito poucos centros de poder. Precisamos de encontrar alternativas».

É estranho pensar que esta tentacular apropriação dos Estados e das pessoas possa adiantar-se à morte física do planeta e à morte eterna da humanidade. Porque as grandes Empresas que começam a centralizar todo o poder afundar-se-ão nele, arrastando consigo a massa dos seres inteligentes.
Disse Kathleen que, no fim, o oráculo desapareceu no imenso ecrã branco, sob forte aplauso, tão etéreo como surgira. Será esta uma nova vaga de Messias, séculos e séculos depois do Messias a quem chamaram Cristo? Ressurreição ou Morte?



III


enfim, o mundo moderno e as novas dívidas

O que acontece nos domínios atrás aflorados, acontece sobretudo com a indústria financeira e os efeitos da Globalização sobre esse enorme poder. Um poder que foi trabalhado para gerir as trocas e a expansão das redes habitacionais e de produção, associado entretanto à economia e à política, segundo as muitas ideologias que arrumam os países por máfias meio encobertas, começa a esmigalhar milhões de seres humanos, atirando-os para a miséria, e erguendo as classes ricas, coladas ao poder, para um falso paraíso na Terra, apesar de se saber que as dívidas contraídas em todos os continentes, e que alimentam os credores, deuses negros do trabalho escravo e do manejo dos juros, se escondem atrás das agências de notação, histéricas, trabalhando numa vertigem igual à das Bolsas, atando os pulsos de toda a gente remediada a sinais de códigos informáticos (AAA / BBB / CCC / C-lixo / Lixo irreparável). Há quem acredite que as dívidas são hoje uma entidade deificada, A DÍVIDA, coisa sem rosto, ingerível, que acabará com os últimos escravos. Ela paira sobre uma paisagem destroçada, meio submersa nos oceanos putrefactos, enquanto aquela falsa Fada Azul que se desfez aos olhos de David assim continuará, na morte eterna, no mais fundo dos mares globalizados.
Se permanecerem assim, como têm sido formadas, as regras vigentes da economia internacional podem levar-nos a imaginar o que acontecerá na maioria dos países do imenso Terceiro Mundo, e de outros mais avançados, intercalares: nenhum deles atingirá verdadeiramente o patamar de país desenvolvido. Desta forma,e a hora actual bem o indicia, não é cientificamente palpável que tais países estejam em vias de desenvolvimento, pelo contrário: um cerco de Dívida mantém-se emergente, ajudando as  cadeias  da   produção e da manipulação informativa a descarregarem novos apelos para novas encomendas; ou reiterando os ciclos viciosos de diferentes consumismos. Por isso, os países de certas periferias conceptuais, sinalizados pelas potências mais fortes, encontram-se afinal  em vias de empobrecimento  cada vez maior. A distância entre ricos e pobres não se reduz, aumenta. E este é, sem dúvida, no centro da nossa angústia, o maior escândalo destes tempos. Põe mesmo em causa os tão sublinhados Direitos Humanos.


habitat


Os restos dos grandes sonhos, teias de belas tapeçarias ou caixotes de um marginal habitat tão longe quanto possível das fezes fluviais, fragmentam os últimos habitantes da última e mais extensa civilização. Os precisos dados estatísticos de Rudolf Strahm acabam por se ajustar aos factos de uma certa decadência, exílio, almas solitárias. Ainda sobram juros extorsivos, depois de muitos povos terem pago assim, por duas vezes, a sua sacrossanta Dívida, logo descobrindo que haviam tentado remediar a fome e o vazio com mais encomendas de produtos de emergência. Os bancos ainda activos cobram juros muito altos: a vida no Olimpo, dos deuses ricos, é um enlevo de credores que eternizam novas dívidas, criando assim estranhas genealogias de novos Sísifos, eternos escravos da pedra que rola a cada transporte vazio de sentido. O aumento das taxas decidido arbitrariamente pelos credores, deve-se, na prática, a uma "espada de Dâmocles" que pesa inexoravelmente sobre os devedores acorrentados. 

As pessoas que lêem este blog, do outro lado do mundo, sabem que não há aqui páginas adicionadas, apenas citações breves, a dor é maior do que isso. Os conteúdos não se arranjam no mercado nem eu quero falar sobre mim, muito menos anunciar o mais sumário dos objectos. Quero, num limite indeclinável da vida, à beira da morte eterna, denunciar que vivo um tempo novamente selvagem, helenístico, embriagado, amoral, acultural, cada vez mais submerso no bojo horrendo da Arca de Noé, bebendo leite azedo de cabras febris.



Este post foi redigido sem ter que falar sobre mim, nem anunciar actualizações ou páginas de manejo mais fácil; não se trata de tornar familiar o que é acutilante e complexo. O design é ainda o mesmo, não me obrigo a convencer os outros à mesma dívida de sangue que brota, lenta, dos meus pulsos. E por último: não sou funcionário do nosso amável Google.

2 comentários:

Miguel Baganha disse...

Já o disse vezes sem conta, desde que o conheço, e vou dizê-lo repetidamente, todos os dias da minha vida, «até que a voz me doa», João: a forma como escreve o que pensa e sente é notável, prodigiosa. E não o digo face à incomensurável nódoa que é a escrita dos tempos actuais mas antes comparando-o com os enormes escritores do ontem. Por os ter lido sei que «é assim que se deve escrver assim».

Estou eternamente grato a tudo o que puder ser responsabilizado pela possibilidade de o conhecer, de o ter como amigo, de o saber como mestre.

Do post apenas digo tratar-se da mais bela e dantesca previsão do amanhã.

Abraço-o, mestre.

Miguel

Maria João Franco disse...

Subscrevendo o Miguel Baganha :
"a forma como escreve o que pensa e sente é notável, prodigiosa"

Um grande e Amigo Abraço
Maria João Franco