domingo, outubro 08, 2006

A CONSOLIDAÇÃO DO MAU GOSTO

parte de uma fotografia deRodrigo da Silva
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Sob a presença imperativa da imagem nos nossos dias, entre a publicidade, a televisão e todos os outros géneros de sedução por essa via, rendemos as maiores homenagens à captação mecânica e manual do visível, coisas do nosso apreço, os enquadramentos do mundo. Mas uma imagem não vale mais do que mil palavras, a menos que precisemos de mil palavras para a dizer. É através da palavra, com efeito, que pensamos a imagem. E é na base dos nossos patamares de cultura que acedemos mais ou menos à imagem, reduzindo-a a alguns nomes e adjectivos ou apurando o sentido do que descobrimos nela, invariavelmente por palavras (inerentes a conceitos). A televisão ocupa neste campo um imenso território carregado de lixos, informações, variedades de gosto e rapidez, atando cada um de nós ao vício de sentir visualmente variações inúteis ou de nos julgarmos mais dentro do mundo na vertigem do excesso e das falsas necessidades.
Estes computadores abandonados servem uma breve nota de Nuno Galopim (revista do Diário de Notícias, dia 12), a qual, por sua vez cita a seguinte frase de Isaac Asimov: Não receio computadores. Receio ficar sem eles. E o que receamos na indizível amplitude da televisão, um pouco da mesma maneira, não é a sua utilidade informativa e formativa: é perdê-la cada vez mais a cada dia que passa. Porque, em geral, a fabulosa descoberta da televisão converte-se aos interesses que a compram, não ganha autonomia para trabalhar de forma livre e responsável - inclusive em termos científicos, pela psicologia, sociologia, antropologia. No fundo, a televisão perdeu-se quase à partida, sobrando o que os grupos económicos julgam poder meter nela, sem a respeitar, sem nos respeitar, porque lhes importa que os ecrãs debitem um fluxo aliciante, contínuo e redundante de informações. Programas e publicidade justapõem-se, repetem dados, prolongam a mesma sensacional notícia durante dias.
É falso que os programas oferecidos pela televisão sejam o reflexo do gosto do público. A quantidade de soluções formais em estereótipo, patetas, gritantes, além da própria mediania do cinema, entre sexo, excessos, violências várias, horas e horas de futebol, restos da miséria popuplar, tudo isso, e só isso, pode configurar um dia de televisão, com os melhores programas (raros) a passarem às três da manhã. E é mentira que todos os cidadãos, apesar das perversões que os seduz, prefira viver noticiários e formatos programáticos exclusivamente naquele sentido. É certamente falso, também, que esse público não seja nada suceptível de reajustar hábitos, de se comover com uma novela de grande qualidade humana e existencial. Basta fazer a experiência com dois grupos de participantes, o primeiro exposto à televisão que emitimos todos os dias, o segundo confrontado com obras de valor plástico, estético, surpreendente, entre conteúdos diversos: a reportagem de fundo, que concentra a emoção, o cinema que envolve sequências de beleza, de força, de questionamento sobre a condição humana. Imagino que o resultado estatístico desta experiência premiasse sobretudo o segundo alinhamento.
Lembram-se do Villaret? Do Vitorino Nemésio? Ignoram sempre, na sua simplicidade física, as crónicas de Hermano Saraiva? Enfadam-se com a vivacidade e profundidade do programa «Prós e Contras»? Os estudiosos dos fenómenos da comunicação de massas defendem que a curiosidade pela exposição da tragédia, ou por temas repetitivos e sem valor de fecundidade, embora existam em abundância dada a violência dos nossos contextos, não abandonariam por isso, antes pelo contrário, os cenários de um maior e mais inventivo cuidado na programação televisiva, o seu comprazimento visual em termos abrangentes, variados e consistentes culturalmente. Abordagens ficcionais acima da média, na produção portuguesa, como «Olhos de Água» ou «Nunca digas Adeus» funcionaram em bons termos de audiência - e hoje, a despeito das «bruxas» Laurindas, o espaço nacional mostra-se a ganhar mais valias neste campo e ficou provado que a língua portuguesa, bem trabalhada, não deixa saudades salivares do inglês ou da brutal ressonância que nos chegam pela boca de muitos heróis americanos.
Estamos apenas aflorando o problema a meio da escala possível de valores. Nada do outro mundo. Mas daí para a frente, de forma complementar, crescerão gostos mais avisados, maiores interesses culturais, e talvez um esforço, da parte dos nossos directores de programas, para saírem da camisa de forças em que se deixam amarrar, por vezes com algum prazer, pela voracidade dos anunciantes e jornalistas cúmplices.
Vejam só: para que serve uma televisão que, entre dois programas medíocres, nos obriga a esperar pelo seguinte numa longa colagem de anúncios? Posso garantir-vos que já vi um programa inteiro de outro canal no intervalo da publicidade daquele onde estava inicialmente sincronizado. E falam os comerciantes da imagem mergulhada em poucas palavras, julgando poder assim encher o tempo e o gosto alheios, no cumprimento das regras da livre concorrência. Julgam que ocultar uma obra de Tarkosky às duas da manhã, ainda por cima rasgada por proibitivos blocos de publicidade, lhes alivia a consciência e lhes permite a maior das devassas, a vertente de todas as inutilidades, no chamado prime time, onde nem sequer se cultivam pequenos inserts aliciantes sobre a vida e a invenção do futuro.
Não tenho medo da imagem: tenho medo de perder o sentido dela.

4 comentários:

naturalissima disse...

"...Não tenho medo da imagem, tenho medo de perder o sentido dela."

Mais excelente ensaio, tio.
Estou de passagem e a correr...
Daqui de Mozambique receba um beijinho, carregado de calor...

Daniela

naturalissima disse...

"...Não tenho medo da imagem, tenho medo de perder o sentido dela."

Mais excelente ensaio, tio.
Estou de passagem e a correr...
Daqui de Mozambique receba um beijinho, carregado de calor...

Daniela

Anónimo disse...

As suas palavras valem mais do que mil imagens.

Miguel Baganha disse...

É sempre bom ficar embriagado pela realidade das suas palavras, caríssimo Rocha de Sousa.

Que pena não usar chapéu, pois certamente o tiraria neste momento, perante a extraordinária análise que mais uma vez faz da nossa sociedade de consumo abrupto e pouco proveitoso.

" Se bem me lembro... "
Faz muito tempo, que não vejo um bom programa televisivo.

Um abraço,

Miguel