sexta-feira, outubro 13, 2006

A ORDEM NATURAL DAS COISAS

foto Rocha de Sousa

num país do desassessego


A ordem natural das coisas é não haver nenhuma ordem natural das coisas. Lembram-se do Noivo, um homem de meia ideia, vestido de smoking, pasta na mão, cabelos sedosamente puxados atrás, como nos velhos tempos da brilhantina - esse excluido que vogava pelos cafés de forma altiva e inabalável? Assim ficara desnatural, com efeito, pelo facto de ter sido abandonado pela noiva em pleno altar. A súbita vontade alheia, contraditória de mil promessas entretanto feitas, implodira a própria cerimónia do casamento e o Noivo perdera-se dele mesmo. Hoje, olhando para o mundo em redor, a verdade é que nos tornámos todos noivos, sem smoking. Convertidos ao desleixo global, luxo aristocrático invertido, homens e mulheres usam calças de ganga das mais diversas maneiras. A rapaziada, entre os jovens semi-universitários e os parlamentares de gabarito, usa barba crescida, aparada uns milímetros acima da pele por uma nova invenção no meio industrial das máquinas de barbear. Mas não se pode assegurar em rigor que tais máquinas tivessem nascido depois das barbas haverem crescido mal aparadas. Pela ordem natural das coisas, primeiro teria crescido a barba, depois a tecnologia para o tratamento da sua qualidade. Nos cafés, no intervalo da discussão sobre futebol, alguém, mais afoito e porventura mais culto, assegura que a máquina apareceu primeiro, que acontece em muitos outros casos, propondo aquele bizarro tratamento da barba. A propósito dos cafés, cada vez mais raros, improisados e de menor gosto, há neles uma persistência curiosa, mais antiga do que as calças de ganga: o hábito de quase toda a gente tomar ali o seu pequeno almoço, café com leite e pão com manteiga, enquanto alguns outros só consomem um copo de vinho, uma dose ou duas de três. Nas tascas também ressoam os telemóveis, há telemóveis por toda a parte, e muitos e muitos jovens passeando com os aparelhos colados às orelhas, passando para as namoradas palavras obscenas. O mundo, aliás, ficou cheio de telemóveis, de primeira, segunda e terceira gerações. Os pais fotografam os filhos quando os levam para a Escola, braços levantados, câmara de telemóvel eficiente e silenciosa - Deus olhando do alto o funcionamento do Seu quotidiano. Apesar de tudo, o país está empobrecido, garantem os economistas e os políticos. Mas as terras estão atulhadas de cidades a perder de vista, paisagens de betão onde abundam o lixo e os consumos, uma pressa de convocar o futuro. E isso caracteriza bem, paradoxalmente, os cidadãos que ainda não chegaram a uma mais profunda consciência do tempo, ou seja, da morte. Náo é por acaso que amentou o número de vagabundos e os sem-abrigo, todos os que, mesmo na enxovia das camas de cartão, deliram com os principais clubes de futebol, desdobrando longos discursos que invadem territórios alheios - até lugares electrónicos como este - para criticarem arbitragens, faltas mal aplicadas, lesões de jogadores, políticas da Federação, da Liga, da Fifa, uma corrupção que deslisa no intervalo dos jogos e nos bares do norte. Exclamam por vezes, num caso de contusão mais grave, que não há Serviço Nacional de Saúde capaz, que os Centros não têm funcionários nem aparelhos, que as urgências migram para o litoral e para as grandes cidades, que as maternidades foram fechando, sobretudo no interior abandonado, ficando assim os doentes e as grávidas a dezenas de quilómetros dos sítios próprios das suas necessidades, o que fez duplicar, só num ano, o número de óbitos e partos nas ambulânvias do INEM e dos Bombeiros. Ao lado dos incêndios, bom negócio de sobras e novos pobres. A par dos lixos atirados um pouco por toda a parte. Ou dos produtos venenosos que fábricas e suiniculturas despejam nos rios e lagos do jardim à beira mar plantado. Nas praias também, calor a prumo, milhares de pessoas encalhando na areia, a lembrar terrivelmente os campos de refugiados de que África está repleta, entre guerras e ditadores cegos. Afinal, somos pobres ou ricos? Talvez remediados, como no tempo rural de Salazar. Havia crianças com a bandeira da Mocidade Portuguesa e cantando o Hino Nacional. Hoje as crianças são geniais, embora banqueteando-se com tecnologia alienante (jogos apocalípticos) e sandes americanas - produto que nos vai colonizando e tornando obesos. Ah, o nosso rico caldo-verde, com uma rodela de linguiça a meio. Os mais pequenos são transportados nas manhãs de folga em carrinhos tipo new look, enquanto os pais ainda vigiam os fotógrafos das redondezas, por causa da pedofilia e do eterno processo da Casa Pia. Há muitos arguidos em Portugal, gente de acasos e da candonga, ricos cada vez mais ricos e pobres cada vez mais pobres. Porque os pobres desempregados preferem vender umas gramas de droga a juntar-se à tarefa camarária do lixo, um lixo urbano sempre acumulado, publicidade rasgada com ele, ou nas paredes, em sucessivas gerações desde o 25 de Abril. Nessas noites de bruma, para além das escassas árvores da cidade, há gatunos roubando carros ou assaltando apartamentos, na melhor das imitações das escolas estrangeiras, Nova Iorque e Chicago, por exemplo. A GNR e a PSP são polícias que costumam passear de carro desportivo, linhas azuis e verdes, mas os agentes pedestres, quando se encontram com um bandido, têm de fazer contas para saber se estão em situação de legítima defesa ou não. Antes disso já comeram com um balázio na barriga e as suas velhas armas, encravadas, nem puderam responder. Cada tiro de um polícia é um polícia em tribunal. Mais arguidos, cadeias onde a sobremesa ao almoço pode conter pequenas doses de cocaína, e depois a sida, a tuberculose, coisas assim. Os filhos dos filhos de alguns dos presos mais velhos pagam taxas moderadoras, agora de utilização, são metidos em Casas de integração, dormem lá uns tempos, cortando cartolinas, e depois fogem pelo muro descarnado e ficam adstritos a uma zona de vagabundos, a trabalharem bem a solidariedade dos grupos que andam durante a noite distribuindo mantas e sopinhas quentes. O pior é a televisão, não há sítios para ver os jogos, excepto algumas tabernas, e o futebol, além do eixo do mal, é a sua mística, o país chega a parar, a assembleia nacional faz pausas apropriadas. As rixas repetem-se todas as noites. Os médicos de família não passam de uma ficção. Se não há futebol na televisão, há porrada e notícias com crimes hediondos, já de marca portuguesa, e publicidade a espectáculos que enchem estádios ou novelas cheias de armadilhas onde os bons actores portugueses perdem o seu tempo e a sua dignidade. A balbúrdia dentro e em volta de Lisboa cresce de minuto para minuto, as pessoas mais velhas ficam perplexas, e aqui há dias um velho de setenta anos perdeu-se lá para as bandas do eixo Norte-Sul, Cril, Crel, andou em contramão por estradas sem sinais, ou com poucos sinais, errados, mal escalonados, o que de resto acontece por todo o país e é causa importante dessas tragédias do asfalto, diagnosticadas sempre pela polícia como devidas ao alcool e à velocidade excessiva. O velho deixou o carro num recanto inócuo e voltou de táxi, no outro dia, para o recuperar. Mas o carro tinha desaparecido e o pobre homem nunca mais o viu, perdendo assim o negócio de batatas que transportava de um produtor dos arredores para a zona das Olaias. Nesse dia, quando chegou a casa, lá estavam os papéis do IRS, um pedido por conta, uma esmola solicitada pelas Finanças. Ainda pensou em falar com o filho, mas o desgraçado acabara a licenciatura e estava desempregado há mais de um ano. As Universidades haviam perdido o tino, julgavam-se produtoras de elites cordenadoras, afastando-se do mundo real e procurando assegurar-se de que os Politécnicos iriam produzir tecnólogos, num país a abarrotar de engenheiros, nas empresas, nas estradas, e sobretudo nos Governos. Como os professores dos primeiros níveis do ensino eram nómadas, andavam a ensi-nar um ano na Lousã e no ano seguinte a leccionar em Ourique, o insucesso escolar talvez comece logo por aí. Que não, diz o Ministério. A estratégia da rede escolar tem de ser vista, programas, livros, autonomia das instituições, mesmo aquelas que restaram perdidas no mato. Perdidas na memória daquela paz e daquela medida que faziam das brincadeiras, no recreio, uma verdade calorosa.

Nesta ordem natural das coisas, que não é ordem nem natural, os velhos atrasam-se no caminho para a morte, atrapalhando a Segurança Social. E os meninos, nascendo cada vez menos em nome da cidadania da mulher e de uma escassa procriação, com raízes genéticas mirradas pela economia, vão crescer sem afectos, mordendo o isco dos matulões e dos cigarros. Os velhos esperam sentados nos bancos das ruas brancas do Alentejo ou nos escassos jardins onde ainda podem jogar às cartas. Alguns pensam: a morte nunca mais chega. E outros dizem aos seus botões comprados há muitos anos na retrosaria do Sequeira: deixam atrasar tudo e não há listas que cheguem para tantos atrasos. Sousa Carneiro escreve: desfizeram-se os pomares, abriram cotas estreitas na agricultura, largaram o mar salgado e afundaram as traineiras, perderam a guerra em África e as pistolas que restaram oferceram à PSP; queimam as florestas e toleram os negócios obscuros, falam em mobilidade como se tivéssemos que voltar ao paleolítico e regredir em caminhadas imensas, enquanto o trabalho falta e se apregoa com pompa que nunca haverá mais empregos estáveis, tudo rodará em volta de tudo. Os psiquiatras não, esses não rodam, nunca mais voltarão a ser nómadas: os andarilhos da indústria ou do ensino, e quem sabe, um dia, se da saúde, esses sim, globalizaram-se e frequentam psiquiatras por causa das bipolaridades incandescentes, da nostalgia, e da falta de apoio aos mortos na estrada.

Mas Almada Negreiros disse um dia, e com razão, por três vezes seguidas, entre minutos, sobre a urna de uma celebridade: Há pontos finais.

2 comentários:

AnaGarrett disse...

E parágrafos.
;-)

Anónimo disse...

intiresno muito, obrigado