domingo, abril 15, 2007

CRÓNICA CONVENTUAL DAS VELHAS ARTES

EXCERTO DAQUELE LIVRO DE ROCHA DE SOUSA

A promiscuidade que se vivia no labirinto de terrenos e barracões, entre pintores e escultores, contraditórios na teoria e no fazer, mas condenados a uma partilha sem nexo, gerava, em todo o caso, alguns frutos surpreendentes. Nas oficinas de grandes dimensões, apodrecendo pelos travejamentos superiores, as peças tentadas, contudo, decorriam de uma realidade assim, da moleza inicial e propiciatória do barro, certamente, entre as esperas debaixo de plásticos tendo em vista minimizar os efeitos do tempo -- e eram veredas ladeadas pelos cavaletes, tulhas de argila, bancadas e maços sujos, guindastes de arrasto, pranchas móveis, espátulas, formões, goivas, instrumentos para afeiçoar ou cortar a pasta de argila. Tudo isso, nas diferenças e nas semelhanças, colava-se ao atelier próximo, cheio de enormas telas com manchas de trincha, figuras oitocentescas geminadas aos símbolos da pintura pop, cujo léxico era mais americano do que português, e os passos e batas em volta, milhares de manchas de cores numa espécie de harmonia por antítese, objectos velhos, inorgânicos, por vezes composições tridimensionais, proibitivas, formas com passagens da madeira ao ferro, ou telas fingindo cartazes de touradas sangrentas, de mistura com os rostos sedosos da perfumaria capaz de cativar (em offset e paradoxo) o nosso próprio olhar, pele, desejo, nostalgia de gente perdida nas adolescências da periferia social. Recortes também. Citações. Quadros pendurados uns por cima de outros nas altas paredes da sala, um cheiro a óleo e vernizes, este era um mundo também confuso pela falta de espaço, pela desarmonia dos tipos de cavaletes e de outros equipamentos, pelos lavatórios entupidos, baldes de socorro, um oceano de pinceladas nas camadas de tinta branca ou cinza que cobriam quase por inteiro as faces internas dessa espécie de cubo com um janelão de quatro por cinco metros, de ferro e vidro, solução imprópria, porque demasiado rígida, produzindo tanto um clima de estufa como a pulverização do famoso efeito de catedral.

2 comentários:

naturalissima disse...

Lugar carregado de balbúrdia de conteúdos, de onde se explora um cenário perfeito e belo para se criar/recriar arte... Leva-me a imaginar, viajando em forma de traveling com uma câmara na mão, construindo sequências de cenas vivas de artistas envolvidos no seu mundo e de suas coisas...

tiomeu, para quando está a edição do livro?
Parce-me mais um, com qual se poderia fazer um belo, interessante e importante filme.

Uma boa semana para si e tia Mami
Daniela

Anónimo disse...

Espero que o livro seja editado brevemente. Estou desejosa de o ler. O excerto já deu para entrever o quanto vou gostar. Parabéns! Um abraço de quem muito o admira, e até um dia! (por enquanto ainda estou no quase quase que nunca mais acaba da dissertação, e gostaria que no final me desse a sua opinião...) Ana Tudela Lima de Sousa