sábado, maio 19, 2007

APOCALIPSE BRANCO




CITAÇÃO

Hélder Spínola


No mundo em que vivemos, o aquecimento global, a poluição e o degelo são alguns dos sinais que reflectem o nosso impacto no planeta e nos fazem recordar a nossa responsabilidade ambiental. A percepção de que a rentabilidade das empresas depende de um desenvolvimento sustentável, a sensibilidae dos limites e potencial do crescimento económico, seu choque na realidade natural, passam necessariamente pelo ecodesign dos produtos bem como por equacionar a utilização dos materiais resultantes dos próprios processos de reciclagem.

Palavras que se inseriam em muitos discursos do século XX, como se fosse possível conservar a raiz do mal sem trabalhar a sua raiz, o comportamento e a lógica da acumulação em sucesso. O problema, em última instância só poderia ter passado pelo redireccionamento do desejo, pela contração em ordem ao essencial, pelo fortíssima mudança dos objectivos de toda a sociedade.

pequena reflexão para ficcionar

A fase de agravamento das condições ambientais do planeta Terra só foi devidamente pressentida por astrónomos do século XIX, alguns visionários, outros criativos, como Flamarion, e por muitos cientistas, astrofísicos, geólogos, especialistas de oceanografia.
Hoje acabou a agonia de Indonéia. Dela apenas flutuam nas águas alguns destroços que parecem subitamente muito antigos, animais, aves perdidas do céu e dos ramos das árvores, milhares de corpos humanos semelhantes a bóias inchadas, encalhando aqui e ali, já em decomposição e sem nenhum auxílio em volta, ao invés do que acontecia quando as catástrofes, no século XX, pareciam ainda pequenas, domináveis, superadas por grandes massas de auxílio e reconstrução. O céu -- dizia um jovem astrónomo inglês na sua noite de embriaguez -- está decididamene desordenado. Já contei oito cometas em oito dias, um erro colossal não sei porquê, pois nem sequer se previa qualquer fenómeno desse tipo para esta altura, no quadro da cartografia cósmica que controlamos.
Em maio de 2147, o Hublle10 e o observatório lunar 538C, sincronizados depois das fotografias iniciais resolvidas através do primeiro daqueles aparelhos, registaram em centenas de fases e angulações, aquilo que terá sido, há biliões de anos, a fase terminal do choque entre duas galáxias. Não me sai da cabeça esse fabuloso acontecimento, apesar das pesquisas actuais e das eventuais vias de passagem para outros universos. Aquela tragédia então fotografada, lindíssima, precisou de muitos milhões de anos para atingir tal limite, tal ponto, o que vemos ainda todos os dias, numa extensão interminável de anos luz, algo que está chegando aos nossos olhos frame a frame e que nunca passará disso antes da nossa morte na relatividade das escalas, do espaço e das massas, nas virtudes de velocidade que, embora perto da deslocação da luz, só os atingiu em convulsão (calcula-se) depois de um milhão de anos. Na «Nave da Esperança» que deriva por impulsos gravitacionais, pensamos na nossa galáxia, aparentemente protegida em longa estabilidade, e no entando sabemos como as estrelas explodem aqui e além, enquanto os planetas com vida que eram estudados numa fase crítica já tinha morrido há mais de um século.
Quando a bela Veneza se afundou, os sobreviventes da catástrofe universal ainda lá foram em pequenos grupos.O testemunho desses visitantes parecia patológico e a sua própria vida já perdida. Deixavam-se arrastar em novos barcos accionados por baterias, contornando as varandas, vogando ao acaso, olhando longamente as cornijas e os telhados sombrios. Para esses lados parecia não haver as intempéries e derrocadas de países como os Estados Unidos da América nem a imensidade dos lagos que lá surgiram, todos os dias chupados pela terra empapada. Mas estas coisas, tendo em conta a velocidade imprevista dos acontecimentos, criavam condições nunca imaginadas e outras exigências de resposta. Os bombeiros de Nova Iorque, por exemplo, deslizando em embarcações próprias nas ruas transformadas em rios, onde os arranha-céus haviam atingido a natureza aparente de anões, raramente tinham de acorrer a fogos. Ao contrário, e sem ilusões quanto ao nível das águas, haviam apurado métodos e tecnologias para acudir a imensos desabamentos, vítimas ou suicidas, gente impreparada para a situação e não raras vezes afogando-se após horas de resistência com as mãos enclavihadas em cabos e pontas de cartazes desactivados.










O aquecimento do planeta, tropicalizando a Europa e outros locais de latitude idêntica, trabalhava num verdadeiro paradoxo com a descida dos gelos, cidades inteiras como transatlânticos brancos dirigindo-se para sul. O branco imperava em toda a parte, tornava o apocalipse de uma alvura aparanetemente salvadora.
Metade do planeta já se afundou em imensos oceanos de lava branca, contra um céu branco, de nuvens altíssimas, a par de invernos curtos e absurdos. A Indonésia soçobrou por fim. A Rússia morre de frio, sempre branca, com a população reduzida a um terço. De um lado e do outro da antiga cortina da guerra fria já não é possível accionar os silos onde hibernam os grandes misséis intercontinentais. Não já verdadeiros suicídios colectivos. Os homens suicidam-se em solidão, sabem enfim que esse é, como dizia Camus, o único problema filosófico ainda convocável