«Fiquei em estado de choque quando à noite ele me confessou que tinha horror a estranhos e preenchia o silêncio com disparates» Este subtítulo deixou-me atordoado, não pela frase em si, mas pelo que ela anunciava ao meu próprio sentimento de horror, não raras vezes. Procurei o início do artigo, um texto de Erika Castriel com ilustração de Corbis/VMI («Psychology Today»). Muitos dos meus amigos, quase todos companheiros na guerra que Portugal travou em Angola, falavam-me de sintomas destes e de uma terrível sensação de claustrofobia. Perdi o contacto com a maior parte deles e na altura em que regressámos a Lisboa não se falava em síndroma póstraumático. Angola fora, para grande parte de nós, um encontro com o medo, com a saudade, com a impotência, com a raiva e a depressão. Mas, no meu caso, recebendo notícias e livros que a minha mulher me enviava, o medo contraía-se em certas viagens nocturnas, dias e dias para cobrir umas dezenas de quilómetros. Além disso, uma vez que levara a minha máquina de escrever, sempre que nos encontrávamos numa base da rede ocupava-me a escrever, desde narrativas sobre as nossas deslocações no terreno a peças de teatro, contos e novelas. A zona da floresta dos Dembos era estranha e muito bela, tanto como as margens do Loge, em Ambriz, e só isso bastou para que nunca me sentisse acossado, na iminêcia de morrer. Apesar de tudo. Apesar dos próprios mortos.
Dois anos após o meu regresso a Lisboa, acordei de súbito em pânico, um fogo de ansiedade pulsando no meu peito. E foi então que tudo começou, a palpitação do ser, a rejeição do mundo. Erika Casriel escreveu que «os nossos corpos são como uma máquina hipersofisticada, mas os sinais que emite estão calibrados para a Idade da Pedra». Tenho conversado com amigos que também sustentam a ideia de um corpo já obsoleto e vulnerável, cada vez menos capaz de responder à problemática ou à pressão que o seu próprio cérebro engendrou, agigantando a nossa condição de reféns -- e de reféns da civilização assim criada, carregada de sistemas de produção e de comando que apenas excitam o desejo egoísta da posse, do direito a mais bens, dentro de centros urbanos absolutamente antinaturais, inclassificáveis segundo os valores guardados na gaveta; centros urbanos afinal concebidos como crimes contra a humanidade.
«A ansiedade social, de fraca a grave, como por exemplo na agrofobia, que pode aprisionar a pessoa dentro da sua própria casa, alastra e agrava a ordem das coisas». Convencido de que a minha depressão se expandiu em consequência de raizes genéticas e na força das responsabilidades profissionais, mais pela memória do inferno escolar do que pela guerra lírica num paraíso suspenso, vejo o mundo actual a ser conduzido contra os valores positivos e pacificantes que ficaram simbolicamente gravados na Carta dos Direitos do Homem, enquanto as transnacionais, os exércitos regulares ou de guerrilha, as epidemias, as fomes, os genocídios todos, atingem a mais alta progressão de sempre, a par da agressão tecnológica do ambiente e da sua resposta biblicamente catastrófica, sem retorno.
Uma das palavras que mais detesto é a famosa competitividade. Quem é que pode sustentar a boa natureza de tal conceito, entre seres que sofrem efeitos bem perversos de um combate sem leis, a par da concorrência, a imagem peregrina de que os mercados devem ser totalmente livres, sem Estado ou com pouco Estado, porque tais mercados se equilibram naturalmente? Tudo isso releva de desvios comportamentais e de uma grande ignorância sobre território que se habita e cultiva -- como, porquê, para quê? Talvez a morte branca salve os sobreviventes humanos da crise em que se dilaceram, transformando por vezes uma imensa tristeza na maior das barbaridades. Partindo eventualmente de uma escassez salvadora, procurando o equilíbrio entre as relações de produção e consumo, talvez os ocasionais homens de um futuro distante possam ordenar comunidades bem dimensionadas, culturas de partilha e mercado coordenado, tendo em vista objectivos não dementes ou megalómanos como os de hoje, antes dedicados ao convívio e ao conhecimento para todos, na evocação deste universo onde as galáxias pulsam e movem-se não se sabe porquê. Mas procurar uma aproximação a esse delírio fascinante é melhor projecto do que iludir a morte com orgias planetárias.
Neste sentido, a ilusão dos heróis do quotidiano acabará entre silêncios, na utopia, embora aparentemente sem saída nem glória.
The Lost Soul, 2006 Nuno Cera
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