sábado, novembro 03, 2007

ESTRANHEZA E FEALDADE NAS BELAS-ARTES

Hans Memling

Em todos os séculos, filósofos e artistas sempre forneceram definições do belo; por isso, graças aos seus testemunhos, é possível reconstruir uma história das ideias estéticas através dos tempos. Mas, com a fealdade aconteceu de maneira diferente. Na maioria dos casos, definiu-se o feio em oposição ao belo, mas quase nunca se lhe dedicaram tratados extensos, somente alusões parentéticas e marginais. Portanto, embora uma história da beleza se possa servir de uma ampla série de testemunhos teóricos (dos quais se pode deduzir o gosto de uma época), uma história da fealdade terá, na maioria dos casos, de ir procurar os seus documentos às representações visuais ou verbais de coisas ou pessoas, de algum modo, consideradas «feias». Contudo, uma história da fealdade tem algumas características em comum com uma história da beleza. Antes de tudo, podemos somente supor que os gostos das pessoas comuns corresponderiam de algum modo aos gostos dos artistas do seu tempo. Se um visitante vindo do espaço entrasse numa galeria de arte contemporânea e visse rostos femininos pintados por Picasso e ouvisse os visitantes a julgá-los «belos», poderia conceber a ideia errada de que, na realidade quotidiana, os homens do nosso tempo achassem belas e desejáveis criaturas femininas com rostos semelhantes aos representados pelo pintor. Todavia, o visitante espacial poderia corrigir a sua opinião se assistisse a um desfile de moda ou a um concurso de Miss Universo, em que veria celebrados outros tipos de beleza. A nós, ao contrário, isto não é possível, porque, quando visitamos épocas remotas, não podemos fazer verificações nem em relação ao belo nem relativamente ao feio, porque dessas épocas só nos restaram testemunhos artísticos. Outra característica comum tanto à história do feio como do belo é a que devemos limitar-nos a registar as vicissitudes destes dois valores na civilização ocidental. Para as civilizações arcaicas e para os povos chamados primitivos, temos achados artísticos, mas não dispomos de textos teóricos que nos digam se aqueles se destinavam a provocar o deleite estético, o terror sagrado ou hilaridade. ________________________________________________ Citação da abertura da História do Feio dirigida por Umberto Eco

Frank Frazetta


Geor Grosz

Joseph Adams

Quentin Metsys

Hieronymus Bosch

TristanTzara

Este problema, que vimos introduzido acima por Umberto Eco, não escapa, no livro, a considerações que vêm apurar comparações e julgamentos ali aligeirados. Um artista como Picasso, ao defrontar-se com máscaras africanas, e mesmo depois de saber as suas aplicações ou usos, aplicaria certamente, em plena fruição da estranheza, um conceito de beleza ao objecto. E sabemos como tais máscaras contaminaram uma sociedade em transformação, no século XX, adquirindo um inalienável estatuto de beleza. Isso não evita que pessoas menos informadas, menos cultas e abertas à questionação das formas, classificassem ou classifiqem as máscaras como feias. Esta relatividade não depende apenas do testemunho real no tempo de cada antiga escola artística, depende muito da cultura pessoal, da sua sensibilidade e da riqueza do seu imaginário. Quando eu declaro que considero em geral belas as ruínas de antigos patrimónios, formas que provocam alguma agonia noutras pessoas, isso decorre de identidades culturais peculiares. As próprias imagens que se publicam aqui, do livro citado, são, para muitos de nós, exemplares do belo, ou da estranheza, ou desta e do belo simultaneamente. Ou apenas feias.
A sensibilidade humana, e a longa viagem do seu imaginário, entre guerras e santificações, não é mensurável de tal modo -- ou não é mesmo de nenhum modo.

1 comentário:

jawaa disse...

Fealdade no sentido de incómodo, talvez. Achamos bonito o que suscita prazer e feio o que repugna pela conotação (visão do inferno nas primeiras duas)nem sempre coincidente com a perfeição da pintura em si. O quadro daquele homem diminuto e sumido que aparece sentado de perna traçada é decerto apreciado pelo pormenor (as mãos, as florinhas do maple)mas não o queria sentado na minha sala...