O título deste pequena homenagem ao escritor Lobo Antunes veio da sua própria boca, numa entrevista a Catarina Homem Marques. Ele acabara de dizer, um pouco antes, que «a morte tem os nossos olhos». Tenho lido, com regularidade, a obra deste homem invulgar no ser e no aparecer, um cidadão que se assume como o melhor escritor português vivo, que considera tal qualificação «uma evidência», e que, em todo o caso, diz com alguma simplicidade perturbadora: «Nunca sei se sou capaz de escrever ou não, tenho medo». Adianta, ao bater da mesma pergunta, se ainda tem esse medo: «Cada vez mais. Cada vez me é mais claro que sei muito pouco sobre o que quero escrever. Escrever é muito difícil.» Em face de um cancro que o surpreendeu a meio deste percurso, o escritor, cuja reflexão sobre a vida e a morte é eloquente, considerou que, naquela situação, somos confrontados com muitas coisas, refazendo os habituais alinhamentos sobre o futuro. «Ninguém é mais crédulo (disse) do que um desesperado. A minha experiência o dita, e percebe-se então que as pessoas são de uma fraqueza absoluta. Ninguém sabe o que é a morte, mas não faz muita diferença porque também nunca sabemos o que é a vida.» Sobre as pessoas, Lobo Antunes diz que gosta de algumas . Não muitas. O seu coração não é assim tão grande. «Gosto dos homens mais velhos do que eu. Sinto que tenho com eles uma amizade fraternal muito grande». Em relação propriamente aos escritores, Lobo Antunes pensa sobretudo naqueles com quem teve mais dificuldades, cuja leitura era no início complicada, difícil de comprender. Parecia-lhe vogar no nevoeiro. Depois, e como que de repente, tudo se iluminava, o caminho abria-se. «É preciso ler sem ideias preconcebidas». Ao ser questionado sobre o modo como os outros, ou as pessoas em geral, o vêem, o escritor foi determinante ao pronunciar que lhe era indiferente. «Não sei se já percebeu que me é completamente indiferente a imagem que têm de mim. Da mesma forma, a melhor maneira de lidar com os outros é tomá-los por aquilo que eles acham que são e deixá-los em paz. Isso não me preocupa». Lobo Antunes aceita que é um homem reservado e sobre os jornalistas pensa que só tem direito aos livros que escreve e não à sua vida. E, a propósito das entrevistas, diz que a verdade delas, se forem bem conduzidas e sem gravadores, está nos livros e não no autor. «Eu gostava um dia de fazer uma entrevista, a sério. Deve ser muito difícil. O entrevistado conta, obviamente. Mas o resultado depende sobretudo da empatia estabelecida. Já me perguntaram se percebo melhor os livros quando encontro os meus leitores. Há sempre muita coisa que me escapa nos livros. Não estou preocupado em compreendê-los. Aliás, a minha única preocupação é escrevê-los. Estou tão preocupado com os problemas técnicos que a cada passo o livro traz que não tenho tempo para me colocar esse tipo de interrogações». Do seu último livro, «O Meu Nome É Legião», o escritor é sensível à ideia de uma enorme fatalidade que recai sobre os meninos perdidos de si e da sua herança, embora não saiba se essa é a palavra certas para caracterizar as situações dos reformatórios. Em todo o caso, quando começa um livro, e isso é significativo, não dispõe de nada. Está só consigo mesmo. As coisas vão surgindo a pouco e pouco. O processo, contudo e por seu lado, não lhe parece do âmbito da fatalidade. A angústia, sim, ocorre. Espera sempre que haja, em volta e dentro das palavras, outros sentimentos, alegria, esperança, desespero. Isso pode decorrer depois com a leitura dos olhos de quem o lê, previsivelmente, ou da disposição com que se está a ler. «Há certas pessoas que dizem que os meus livros são polifónicos. Não me parece que sejam, mas a minha opinião é só uma opinião. Eu não os li, só os escrevi. De qualquer maneira, é cedo para se fazer um juizo em relação a esse livros. Há muitas coisas neles que escapam a um controle racional da minha parte. É-me difícil teorizar sobre eles».
Estes fragmentos e arranjos sobre a entrevista de Catarina Homem Marques, incluindo necessariamente os pontos mais ou menos fortes das respostas de Lobo Antunes, deixa-nos a alma um pouco seca. Talvez ele tenha razão sobre a necessidade de ser lido e sobretudo bem lido. Perante muitas coisas que ocorrem neste universo de confronto do homem com a sua própria obra, por vezes tem-se a sensação de que o livro está votado à indiferença dos outros, e que o seu verdadeiro destino é servir como objecto de leitura do próprio autor. Lobo Antunes já falou desta impressão, tão anónima é a minoria de quem (nos) lê. O modo como este escritor se exprime nas entrevistas é desconcertante, por vezes tocado de pontos de intensa luminosidade ou de uma partilha lassa e sincera, como aconteceu na conversa que manteve com Ana Sousa Dias. A televisão permitiu-nos ver o autor questionar-se, fazendo correr na voz macia sobre a mesa invisível ,presenças de dúvidas fugazes, obscuridades, cintilações, a entrega de quem sabe o peso da escrita e o seu efeito de libertação. Os seus livros têm vindo a tornar-se mais complexos e tecnicamente mas difíceis. As vozes cruzam-se, mesmo quando graficamente parecem vir da mesma pessoa. E é verdade que vêm. Lobo Antunes deixa-se assaltar pelas memórias e observações mais diversas, enveredando por vezes pelo caminho da engrenagem poética: certas frases que se alternam, lúcidas e retidas de um fragmento da fala enquanto decorre, lembram alguns versos de uma poesia que nos parece conduzir ao interior de nós mesmos, como descobrimos no teatro do absurdo, de Beckett. Um grito. Uma resposta. Uma incerteza. Uma impossibilidade. Entre a morte e a vida, sem futuro.
3 comentários:
Gostei de ler esta sua digressão por Lobo Antunes.
Ele sente-se único porque os autores que lhe chagam à mão através da comunicação social são aqueles que escrevem banalidades e amontoam páginas sobre trabalho de outros, é a interpretação que faço dessa sua postura.
Lobo Antunes é um ESCRITOR por inteiro, mas há outros, bem sabe a minha opinião.
Vimos seu trabalho sobre os pintores de rua. é o trabalho que desenvolvemos aqui no Brasil só que nosso foco arte também envolveeducação ambiental e educação para Paz. Gostariamos ver sua opinião o site é www.terradapaz.org
Pretendemos nos dedicar a expor fora do Brasil em 2009 gostariamos de conhecer mais da arte portuguesa especialmente o que diz respeito aos muralistas e murais contemporãneos sobre cerâmica. Pode nos ajudar?
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