A partir da época em que conheci aceitavelmente o escritor Mia Couto, nas suas presenças, na sua obra, entre notícias de amigos e colegas, fiquei sempre com a ideia de que ele era um interessante contador de histórias, um surpreendente inventor de palavras, e isso deu-me também a noção de um trabalho antropológico, de um olhar do branco africano capaz de se filiar, pela cabeça e pelo coração, no contexto de Moçambique mais profundo. A verdade é que à medida que ele se notabilizava, viajando frequentemente a Lisboa e mantendo aqui contactos de influência (não estou a falar de tráfico), o retrato que eu fazia deste autor ganhou prolongamentos e próteses intercontinentais, começei a vê-lo, sobretudo por vias mediáticas, por vezes até à saciedade, como entidade capaz de ter um pé em África e outro na Europa, particularmente em Portugal, onde a sua fama tem feito com que instituições várias tenham preterido criadores portuguses, de inegável mérito, a favor de Mia Couto. Há muitas razões para isso, algumas eventualmente louváveis, e por certro as sequelas da memória colonial, das guerras, entre sentimentos de artistas por lá abandonados ou minimizados apesar da vontade de os tornar parte do espaço lusófono. Devagar, e muito depois de Mia Couto, chegaram outros, Pepetela, Rui Carvalho, vários, incluindo a comunicação via Internet.
Que faria Obama em Moçambique?Mia Couto publicou (ou publicaram-lhe) um oportuno artigo na revista/única (17.01.2009), sob o título E se Obama fosse africano? A redacção da revista publica uma pequena nota que diz ter o escritor moçambicano assistido com reservas às reacções eufóricas com a vitória de Obama (presume que em Moçambique, ou África em geral). A desconfiança é justificada porque, como dizia Franz Fanon, a passagem súbita de populações ocupadas e primitivas à contemporaneidade (na sua expressão técnico-cultural) provocaria grandes tragédias e difíceis assentamentos de identidade. Se a descolonização portuguesa foi lenta e desatrada, as outras todas (muito resultantes de concepções desemcadeadas após o termo da segunda Guerra Mundial) não evitaram sequelas por vezes hediondas. Os regimes nacionais, um pouco pouco por toda a parte, em África, cristalizaram em ditaduras impensáveis e prioridades militares paralisantes, as guerras civis e tribais sucederam-se e os países (que nunca lhes ocorreu alterar as fronteiras coloniais) regrediram até situações inenarráveis: a riqueza de Angola não reedifica a justiça política e social, Moçambique precisava de ter petróleo e menos insidiosos racismos. Ruanda e Uganda escusavam de consumar em três meses um dos maiores massacres da história humana (800.000 mortos), a África do Sul já deveria ter menos assassinos nas ruas, a Guiné sobrevive entre golpes de Estado e ditadores inconsequentes, o Zimbabwue pertence a Mugabe mesmo que ele sobreviva ao último habitante, o Congo, que já teve um dono inominável, desfaz-se em pedaços e carnificinas. Exemplos que não esgotam esta verificação breve.
Com mais brandura, o que se compreende, Mia Couto, aliás também preso pelo tema, reconhece esta realidade e é dela que parte para fazer a pergunta sobre Obama. Para ele Obama não teria o menor espaço de manobra em África, incluindo Moçambique, seria agredido, preso e sabe-se lá que mais. O escritor sublinha: «Os Bushes de África não toleram a democracia». A odiada América ainda consegue gerar estas ondas de combate aceitável, a riqueza de debates e de complexas escolhas. A esperança em Obama é por boas razões mas ele próprio já relativizou (no centro da crise mundial) o poder das soluções. Mia Couto conta que o Zambiano Keneth Kaunda está sendo questionado, no seu próprio país como filho de malawianos». As raças africanas (já lá foi o tempo em que se dizia que a África é para os africanos) combatem-se a este nível, do geral ao particular, e os senhores do poder, sentados em montanhas de armamento, decretam as exclusões, as discriminações, os massacres.
Este corajoso depoimento de Mia Couto termina com palavras de esperança, imaginando o tempo em que todas as entnias e raças africanas terão oportunidade de celebrar, na sua casa, «aquilo que agora festejamos em casa alheia». Só não faz a estimativa de quantas gerações terão de ser sacrificadas para que isso aconteça. Seja como for, e por isso a ferida dos que viveram África não sara, esse Continente, possível salvador de outros excessos, é ensurdecedoramente belo, fica-nos no sangue, é património da humanidade, deveria ter um destino ecuménico e nunca ser poaauíso pelo sistemas do crescimento sempre. Talvez seja consolador imaginar um não crescimento equilibrante, sem metrópoles gigantescas, nel lixos asfixiantes, nem terras apodrecidas, nem fomes e doenças aterradoras.
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