segunda-feira, julho 06, 2009

SOUSA TAVARES, LANZAROTE, BARÃO NO BRAZIL

Miguel Sousa Tavares numa das varandas da sua casa
que dispõe de uma soberba vista sobre o Tejo



Há dois ou três anos, escrevi neste mesmo blog um auto de homenagem a Sousa Tavares: eram palavras de quem apreciava a frontalidade e lucidez do jornalista, agora escritor, filho de duas personalidades que ainda conheci e que me confrontaram com a coragem de afirmar uma luta, uma arte, a habitual e cobarde intriga da nossa vida, incluindo a intelectual e a política. Sousa Tavares não me desiludiu. E de súbito o EQUADOR, obra legítima, interessante, mas que lhe cortou, em todo o caso, a geografia da identidade e deixou-o a fazer acrobacia na latitude entre separa Portugal do Brasil, sequioso dos grandes espaços e de mais carga inspiradora.
Caro concidadão, a sua entrevista ao jornal «Diário de Notícias», ontem, domingo, é das peças mais decepcionantes que já sairam do nómado adolescente que ficou a residir no seu retrato inconsciente: porque foi muito desconfortante vê-lo reclinar-se na fama, rebolar na boca as quantias que ganhou, o júbilo de um discutível viajante, uma coisa assim a parecer-se com o pequeno salto de Saramago, ele que foi só amar entre as pedras e espreitar daí, sem as pujanças do tal país novo que é o Brasil, o mundo em volta, Lisboa que você também cantou, o deserto global atravessado por artistas corredores, arranhando-se até ao martírio só para gritarem: «quase no fim da colúna, meus amigos, más chéguei: agora sou de Dakár.» Este é o lado mais pueril dos portugueses, postura pela qual ganharam mundos ao mundo para logo os perder, alcançando terras do fim da Terra, e fugindo para o Brasil pela ameaça exterior, mas fugindo para sempre, com barões e baronesas atrás, barcos carregados de meio Portugal para instalar na terra da salvação, lugar dos engenhos, dos escravos, da imensidão que dana a maior parte dos burgueses, montes de mordomias que brotavam da insanidade das pessoas e da exploração alucinada de riquezas jorrando um pouco por toda a parte, era só apanhá-las e levar à côrte. A loucura teve a sua beleza, a sua grandeza, e dela até saíram coisas absurdas e fascinantes como Manaus.
Apetecia-me dizer, à maneira de Caeiro: «eu sou desta terra, vejo e penso a terra, faço pinturas e escrevo livros, não há mais nada para fazer até ao fim daquele outeiro». É verdade, o Sousa Tavares já ouviu falar nos meus livros? Não ouviu. Mas eu, que nem sequer sou pior escritor do que o meu caro concidadão, não venho em nenhuma página, em nenhum telejornal, não viajo quatro vezes ao Brasil só com a massa de uma edição ou duas ou três. E sabe porquê? Porque, depois de vir de Angola, tive de esgaravatar tudo, palmo a palmo, sem jeito para pedir o favor de um destino inteiro, nem o berço onde me caísse do céu uma nuvem de açucar. E como eu há muita gente por aí, os que deveriam ter a oportunidade de sentir na pele essa doçura de cortesia de que você fala. Não, não pense nisso: o homem que lhe fala é bem mais velho do que você e não tem nenhum azedume pelo triunfo dos outros. Mas nos regimes actuais, o triunfo tem uma indústria por trás. Você é um produto dessa indústria e teve berço e esperteza para saltar a sebe. Está aborrecido com o país (um escritor que almoça, telefonado, com Sócrates) e julga ter urgência em apanhar um abanão, pensando que dessa forma alcançará um pouco do tal elixir da juventude, o sal de um inapagável talento. Precisa de inspiração, foge para o Brasil. É verdade que não tem a obrigação de usar a sua sorte e o seu jeito numa verdadeira causa por Portugal. Se somos macambúzios, geramos Vergílios Ferreiras (sem Nobel). A lista não terminaria. Porque os países velhos, são sobretudo antigos, e é nessa nobreza que a experiência escorre para dentro de nós. Juan Gris dizia que a grandeza de um artista se media, sobretudo, pela quantidade de experiências que ele trazia dentro de si. O Brasil serve para experimentar, para exprimir. A força de Angola, mesmo despida da demografia brasileira, mesmo na passagem pela floresta em guerra, deu-me estados de espírito inquietantes, deles retirei «Angola 61». E você a dar-nos recados, sem se importar com a ofensa que nos lega, porque a sua mobilidade também teve o nosso contributo, que é que pensa?
«Vou para o Brasil. É um país novo, de que eu gosto há muitos anos. E sou muito bem tratado sem ser popular na rua, o que é óptimo. É um país optimista, não está cansado, não está desiludido, sem esperança. Mesmo que agora haja tanta asneira feita no Brasil, todos os dias, não é? Só que que eles têm espaço e tempo para uma maior dose de asneira do que nós». O caro concidadão quer espaço e os emigrantes brasileiros vêm até aqui por sufoco e não acham o português (conforme os contextos) assim tão macambúzio. Podem é ter perdido quase todo o cosmopolitismo que já usaram (Eça de Queiroz devia ressuscitar) e por isso agem de forma mais pagã, nas festas tradicionais, com o património cultural de que dispõem. E os ricos fazem como os ricos paulistas. Mas olhe, Sousa Tavares, cuidado com o espaço, não se meta a ser um «sem terra», porque logo-logo terá terrinha para escrever, mas será rondado por outros sem-terra, muitos outros que nunca mais acabam, e você, macambuzado, pensará na bela casa da Lapa, com vista para o Tejo, decidirá vender a terrinha (que é o que eles todos fazem), virá a Lisboa comer uma boa cabeça de cherne, trocará o Algarve pelo Alentejo, e visitará, com algum esforço, compreendo, o «nosso» Saramago, lá nas pedras de Lanzarote. É mais verdadeira, esta ideia, e só tenho pena que o Nobel Português (da literatura) não se tenha curado das antigas solidões. Não é por acaso que ele diz de si, com algum sarcasmo, está bem de ver: «ele que vá para o Brasil ou para Marte, tanto me faz». Alguma coisa há-de fazer. Pois se um génio-para-si-mesmo-sonhando, aqui em Campo de Ourique, lhe está a dizer estas coisas, é porque alguma distorção ética haverá na sua preferência, tanto mais que, se há coisa que você é, e muito bem, é português. Devia estar mais ofendido com as garotadas que você disse aos jornalistas, como se se babasse de ir participar numa fulgurante imitação dos prazeres colonialistas. Mas não fico ofendido: acho apenas que você se desentendeu. E garanto-lhe, eu que conheci de perto o seu pai, em pleno PREC, tenho contactado com muito poucas pessoas tão portugueses como você, meu caro concidadão. Já não diria o mesmo da senhora sua mãe, que muito apreciei, e cuja obra nos legou, em português.

1 comentário:

jawaa disse...

Mas que belo recado!
A ter em conta...!