segunda-feira, fevereiro 04, 2008

CARNAVAL OU A TRANSFIGURAÇÃO DO MEDO

No dicionário pode ler-se que «o Carnaval corresponde aos dias, semanas ou meses, conforme os usos dos países, que precedem a Quaresma.» Para nós cita-se o período de três dias que precede a quarta-feira de Cinzas, tempo durante o qual, por vezes com uma grande vibração catártica, se celebra essa liberdade mítica onde todos os prazeres são possíveis, entre jogos de máscaras, cortejos críticos, bailes de disfarçe, vivência do corpo e da música, danças dionisíacas, uma enorme careta em esgar contra o mundo. As diversas situações desta época singular, que por vezes transformam o riso e a alegria numa manifestação quase monstruosa do ser, têm origens em ritos e exorcismos muito antigos. Naquele fragmento de uma das maiores favelas do Rio acomodam-se os grupos tradicionais do canava brasileiro, o mais faustoso do mundo, com o seu famoso samba, as suas ritualidades, a sua marcha, um assombro de delíro desfilando por uma avenida com bancada que se chama sambómetro. Alguma coisa se exconjura assim, entre a sedução pelo corpo, um sexo enfim liberto das cangas religiosas e morais, uma nova ordem contra o caos habitual das grandesmetrópoles, o apelo à fantasia, o desejo expresso de pôr a ridículo as instituições e personagens do poder.
A ideia que tenho destas manifestações, além de outras de que as religiões se apropriaram, passa pela recusa festiva do cerco habitual demarcado nas sociedades actuais (e nas outras, nas longínquas comunidades do homem primitivo) por forma a eliminar o medo em plena catarse. O Carnaval seria assim, cada vez mais absurdo, a revolta em riso e canto contra uma permanência do medo, do limite na morte. O medo acabaria, duante algum tempo, de perder a força que desaba sobre o nosso psiquismo já carregado de ruído, transfigurando-se transitoriamente na clarificação dos melhores estados vitais, corpo e espírito vogando numa outra dimensão, entre vigorosos exorcismos, gelos e calores tropicais.




risos sem temores

2 comentários:

jawaa disse...

Não fossem os excessos e talvez o Carnaval pudesse ter alguma utilidade de «saneamento» psíquico...

Justine disse...

Foi o que mais me impressionou no RdJ, a capacidade de dar a volta ao medo pelo riso, pela boa disposição, pelo viver para fora. E isto não é só no Carnaval, é a vivência quotidiana do carioca. Interessantíssimo