quinta-feira, junho 19, 2008

O ENIGMA E O 'CÓDIGO' DE MIGUEL ÂNGELO


Michelangelo di Ludovico Buonarroti Simoi («Miguel Ângelo») nasceu em Caprese a 6 de Maio de 1475. Foi, como sabemos, pintor, escultor, poeta e arquitecto durante o renascentismo italiano. A sua versatilidade em vários campos tornou-o rival de Leonardo, ícone do Renascimento. É certo que o seu talento e a sua actividade multidisciplinar permitem-nos usar o termo superior para o caracterizar como génio, tendo mesmo desempenhado tarefas diplomáticas. Era Il Divino. Se Miguel Ângelo nos lembra de imediato a época da Renascença, os artistas, historiadores, e outros especialistas, não podem deixar de pensar também no grande vértice desse tempo, na ciência e na arte, Leonardo da Vinci. Os segredos da sua invenção abriram espaço a uma literatura de falsas descobertas, teses oportunistas que o editorialismo voraz logo aproveitou: fala-se então do «Código de Leonardo da Vinci», uma pirueta de mercado, o que de resto aconteceu com duas figuras públicas do nosso meio televisivo, escrevendo a seguir, bem perto, livros com ar de tratados, «Codex 632» ou «Fundamento de Deus». Umberto Eco abrira caminhos para esta babilónia e outros embustes, com o seu livro «O Nome da Rosa».
variações em torno de Miguel Ângelo, onde alguns julgam ver na
linha da composição o perfil de Dante, especulação que não tardará
a fazer com quem descubra aí a abertura do código de Miguel Ângelo
*
Em boa verdade, esta cadeia de descobertas quase miraculosas e de embustes a fingir de conexões matemáticas ou metafísicas, a par de algumas que não passam de suposições de mensagens subliminares ou de meras zangas do pintor (neste caso Miguel Ângelo) com mestres do seu ofício, incluindo Leonardo. Assim se vendem milhões de livros inúteis e se criam novas mitologias, em pleno século XXI, no qual já chegaria a crença nos extra-terrestres, religião emergente que desperta seitas e agride a fé dos praticantes das religiões ditas tradicionais.
Fala-se de uma primeira teoria, surgida em 1950, quando um diplomata venezuelano visitou a Capela Sistina, no Vaticano. Assombrado com a grandeza daquele fresco que preenche a totalidade de uma das paredes do edifício, Joaquim Diaz González «descobriu» (o que, de resto, é pequena alucinação) que Miguel Ângelo, o renascentista responsável pela obra, escondera o perfil de Dante na cadeia de relações formais, figurativas, estruturais, que edificam o fresco. É até provável que Conzález quisesse elogiar a obra do pintor e a personalidade criadora de Dante,
poeta italiano que escreveu «A Divina Comédia». A escalada deste processo, como tantos outros ao longo da História da Arte, acabaria por reacender as fogueiras da especulação rendosa, datava a primeira etapa da construção do código de Miguel Ângelo. Todos estes temas, suprindo as faltas de enganos aliciantes na cultura actual, reabrindo caminhos como os da «Ilha do Tesouro», nada mais faz do que empreender, em termos de verdade, a formação de outras ilusões, de novos contos do vigário, aliás com luxuosos volumes a satirizar os álgidos relatórios das maiores Academias sobreviventes. Basta olhar para a ilustração apresentada no «Diário de Notícias» para que nos seja possível enjeitar a grosseira linha do perfil de Dante (em baixo, à esquerda), percurso que procura dar como certa a relação compositiva que suscita a união de polos fortes, dos quais se infere a subjacente figura do poeta. Isto embora não se entenda, depois, qual a razão da linha flectir para a testa quando a composição mantém, em cima, um trajeto visual de continuidade. O que, de resto, acontece em pleno nariz: na massa compositiva desse sector existe um bloco de figuras que preenche, na horizontal, até ao limite direito, cerca de um terço da largura do fresco. A menos que se transforme esta extraordinária obra de arte num labirinto de jornal, nada justifica, incluindo a geometria subjacente da composição, a viragem conveniente daquele nariz, o que de resto se vê no arbitrário perfil da boca, cortanto em ângulo uma figura cheia, bem blocada e conhecida. Essa abusiva invenção de uma lógica do percurso para um perfil aparece ainda, a terminar, com a linha do queixo e a oblíqua a apontar na direcção de uma figura reinante nos males do inferno. Uma outra, para tanto, foi cortada e transposta fora do critério seguido noutros casos. E o que faremos com as massas atrás da nuca, conjunto nivelável na horizontal, como da direita, ficando o campo divino, como convém, ao centro da caixa craneana? Mal vai o perfil: não só por estas incongruências, contrariando uma composição inventada por grandes eixos horizontais, os quais integram dois círculos - mas no que respeita à força divina, ao centro, no terço superior da peça, e em baixo, no terço inferior da imagem geral, delineando perfeitamente outro círculo como geometria estruturante da obra. Além de outros aspectos, à esquerda e à direita, nesta faixa que se estende por cima da estreita paisagem dos proscritos, visando completar a simetria do que parece caótico mas bem assenta numa grelha de sentidos copiados das medianas, havendo, em cima e em baixo, na mediana que divide em duas a superfície integral, as tais circunferências, uma maior, outra menor, tudo segundo a hierarquia dos céus, purgatórios, infernos, apesar do desnudamento das gentes e do espectáculo contorcionista conseguido, ópera laica, contra a bíblica memória em que o autor foi convidado a situar-se. Esta teoria risível, que talvez venda jornais, tem o seu ponto mais grotesco, quanto à localização e à forma, na grafia que assinala o olho esquerdo da figura evocada. E se esse olho, avesso à razão da grafia envolvente, por estradas imaginárias na composição, ali aparece - que faremos com a ausência do pavilhão auricular?
As outras fases desta deriva ensandecida pela Capela Sistina incluem outras grandes descobertas: Deus, metido naquilo que dizem ser uma caixa craneana com o cérebro supremo, vem de longe, de infinitas distâncias, e entrega a Adão, pelo toque dos respectivos dedos indicadores, a capacidade de raciocínio. Adão é de facto aquele homem lasso, repousando de costas na rampa de erva que determina o cenário natural. Esta é uma das mais heréticas visões da mensagem de Miguel Ângelo, pois a criação seria uma dádiva de sinais contrários (o dedo direito de Deus tocando o dedo esquerdo de Adão) e isso abre horizontes de pesquisa agora indizíveis.

1 comentário:

jawaa disse...

Posso imaginar a sua repulsa perante o «ver» de quem não sabe ver.
Mas não se inquiete que, na voragem do «mastiga e deita fora» actual, ninguém repara, nem leva a mal, um pouco como no Carnaval...