quinta-feira, maio 10, 2012

DOS NOSSOS ANTEPASSADOS: ARTE MODERNA COMO?


As pinturas da gruta Chauvet são provavelmente as mais antigas do mundo. No «Público» do dia 8 de Maio deste ano era mostrada ao público esta arte parietal que se estima ter sido executada há cerca de 30.000 anos. A recente datação, a mais exacta que existe, confirma que o bestiário que cobre as paredes desta gruta do Sul de França consolida um tempo de formação mais recente do que se supunha, o que obriga a rever muitas teses sobre a natureza das obras e em que termos funcionavam para os homens daquele idade, desenhos e pinturas numa agitação vitalista realizadas, presumivelmente, em níveis de claridade muito baixos, mesmo que reforçados com fogo de tochas criteriosamente orientado. Ao primeiro impacto, Éliette Brunel, sob o clarão da lâmpada frontal, exclamou apenas: «Eles vieram cá!»
Eis uma bela frase. Uma frase que mostra o espanto de uma cientista do século XX perante a absurda qualidade plástica, exímia representação de animais do meio, feita, segundo se conseguira determinar, até então, como tendo uma idade de mais de 40.000 anos. E a quem se referia Éliette, quem estivera ali, quem era essa gente que precedeu o homem histórico tal como o conhecemos? Seriam seres semelhantes a  nós, do espaço exógeno, que ali apontara exemplos do seu estudo no local, onde nunca mais voltaram? A mitologia dos OVNIS acercou-se bem cedo destes testemunhos de uma sábia expressão gráfica e pictórica, aprontada onde ficasse preservada e exprimisse a capacidade do encontro com os meios locais e o seu  valor sintético dizendo a beleza de animais já tão complexos, ao mesmo tempo exaltando a vida daquela terra e ornamentando os tectos das noites quentes ou frias que o fim do nomadismo viera alinhar, convocando mais meios de sobrevivência.
São razoavelmente conhecidas as matérias que o homem deste tempo usava, partindo da própria terra, a fim de assegurar a paleta básica, os materiais de expressão. As especulações quanto a datas, para um pensamento sobre causas e fins, pouco importa. Claro que os artesãos deste mundo remoto tinham uma praxis adequada ao que realizavam e certamente não desconheciam a fauna mais persistente de cada lugar. Mas para que pintavam e desenhavam, alheios e gatos e cães, a sítios de faustosa flora? Penso que isso se devia ao facto de o seu trabalho não ser desinteressado. E era interessado no conhecimento de certos animais, quer a sua anatomia e mobilidade, quer o grau de resistência a um lançamento de caça. Tais pinturas resultariam assim numa educação visual ordenada no sentido de se obter um justo e rápido olhar sobre tudo o que importava ver no intuito da caça. Parece muito pragmático para seres tão acossados por perigos de origem desconhecida. A metodologia e o rigor das representações podem apontar esse modo de operar quanto ao caminho visado. Mas não seria o rigor a face de uma mimética capaz de tornar límpido o objecto do desejo? Percepcionas e conheces bem, melhor acertas com os instrumentos de morte. Os desenhos parietais, sem composição de campo, seriam alvos de uma liturgia repetida muitas vezes e propiciadora do êxito na caça e no índice de sobrevivência.



Intriga, em todo o caso a raridade e a situação destes procedimentos. Não há bizontes pintados por tudo quanto é tecto de rocha ou parede alisada. Esses habitáculos, se é que se tratavam de habitáculos, não tiveram uma disseminação estrondosa: talvez porque eram trabalhos de manejo difícil, talvez porque poderiam servir sobretudo para a comunidade aspirar colectivamente à bondade dos deuses. Então, em lugar de habitação, as cavernas seriam espaços de refúgio e convocação dos espíritos. O homem tolhia-se perante a sua figura, porque aspirava a eternizar em qualidade aquele material tão constante à sua volta. Houve sítios, em todo o caso, onde figuras humanoides, de cabeças orladas, foram aparecendo no que talvez fosse a invenção a montante da pastorícia. A estranheza das cabeças e das suas ornamentações iguais levou os crentes da mitologia OVNI a verem ali figuras de outros lados, estrangeiros, que procuravam estabilizar os meios da vida na Terra. É muito e é pouco para ser verdade. Olhamos aquelas figuras e apetece-nos rodar a cabeça, ver em movimento para melhor sentir o movimento dos seres representados. Não há praticamente grutas destas onde, a certa altura e num espaço maior, não nos confrontemos com figura acima do nosso olhar. Também isto nos faz espécie, porque imagina-se mal como fariam os artesãos para subir ao seu campo de trabalho e executá-lo como que em primavera, sem os tornar façanhudos e distorcidos.
No primeiro dia em que entrei na capela Sixtina, no Vaticano, havia muita gente, um marulhar de vozes baças. Vendo mal e sem grande ânimo as pinturas das paredes, verticais, tive a sensação de que não havia tecto e fui olhando para cima, afinal como a maior parte das pessoas que me envolviam e até rezavam. Lá estava, bem no alto e com grande sabedoria técnica, uma série de pinturas que interessavam ao lugar e sugeriam a ascensão salvadora. Assombrado, só me vinham à memória o grande enlace das pinturas nas paredes e tectos das grutas que conhecera.

4 comentários:

jawaa disse...

É bem certo que não se cria nada de novo, é sempre uma repetição de algo que nem suspeitávamos.
E concordo com o facto de melhor conhecer para acertar a seta ou o bisturi, por isso a curiosidade que conduziu à sabedoria.
Só que resta sempre mais o que aprender, felizmente.

Anónimo disse...

"Na Natureza,nada se cria, nada se perde, tudo se transforma" (Lavoisier), uma afirmação que também se aplica às ideias e de modo cada vez mais claro. A transformação das ideias proporcionou alguma sofisticação no modo como sentimos, experienciamos e intervimos atualmente no nosso próprio mundo e no mundo dos outros (seres humanos e restantes criaturas). No entanto, essa sofisticação (Cultura)nem sempre resiste à erupção dos instintos, momentos mais ou menos duradouros em que, como diz o povo, "estala o verniz". Em diversas situações do dia a dia que vivenciamos, ficamos na dúvida: é certo que o Homem já desceu das árvores e saiu das grutas, mas será que mudámos assim tanto por dentro, será que saímos da Caverna (Platão)? O regresso à arte figurativa dita "primitiva", e mesmo à arte abstrata, como explica Leroi-Gourhan, parece mais um recuo perante o beco sem saída da figuração e das realidades "práticas" obrigatórias do mundo atual: uma realidade de sombras, para enganar os prisioneiros da Caverna.

Miguel Baganha disse...

Os nossos antepassados (pelo menos os ancestrais autores das pinturas que ilustram o texto), sem aprendizagens ou academismos de quelquer espécie, limitavam-se a reproduzir o seu quotidiano, reflectindo a realidade visível percepcionada numa época onde os meios, técnicos e tecnológicos, eram os mais básicos e rudimentares. Na minha perspectiva, o responsável por tal narrativa ilustrada era escolhido com base nos quesitos necessários para a dita "tarefa": maior acuidade, habilidade, destreza ou um "jeito" especial. Mas não me parece que existissem "escolas" para melhorar ou "des-melhorar" desempenhos: a experiência adquirida no decurso do o exercício diário era a escola. A partir do momento em que as máquinas surgiram, com Lavoisier espreitando na esquina da evolução tecnológica, tudo se transformou, de facto. Mas nessa deriva tudo se esgotou: as ideias, os processos de execução e os conceitos levando o Homem a um vazio completo, no qual a razão da sua própria existência é questionada. É caso pra dizer: o Homem quer (e precisa) regressar.

É como venho dizendo há muito, caro amigo: nada se inova, tudo é sequência (incluindo o Homem). Há muito tempo que a única coisa a progredir, realmente, é o estado de decomposição da criatividade humana. Arte moderna??? O que é isso? -- não sei. Mas, antes de tudo, convém saber três questões: como se define o conceito de modernidade; quem o define; com que intenção. Caso contrário vamos continuar a olhar para cima, admirando o tecto da capela sixtina e as pinturas rupestres dos nossos antepassados?

Anónimo disse...

Acho sinceramente que o conceito menos operacional da História e da Crítica da Arte é “modernidade”. A variedade e riqueza das propostas artísticas da primeira metade do século XX, apresentadas e vendidas como uma máquina fantástica, mirabolante, de tempestades e sonhos em contínua sobrecarga de energia, influenciou positivamente a outra metade do século, quando a sua irreverência foi absorvida por uma sociedade crescentemente intelectualizada e ávida de mudanças. Não deixa de ser curioso que uma referência arqueológica importante seja precisamente o ano de 1950, ano de início do “presente”, sendo que todos os acontecimentos anteriores são AP (Antes do Presente). Ainda em relação à “modernidade”, parece-me mais verdadeira e justa a perspetiva histórica, que reserva ao Modernismo, no grande armário da História, um gavetão cheio de gavetas e gavetinhas e caixinhas, nem todas comunicantes. Procede-se assim por comodidade de arrumação, mas foi assim que os movimentos artísticos e os artistas se relacionaram entre si antes do mercado da arte se americanizar, moldando novas elites “artísticas” e condicionando todos esses artistas a conviverem ou a confrontarem-se em insanas exposições internacionais disto e daquilo. Parece-me que propor uma discussão em torno do conceito de modernidade é entrar num “saco de gatos” e querer saber quem o define e com que intenção, só pode assanhá-los.
Em relação às pinturas rupestres de Chauvet (30.000-32.000 a.C.), recordo que as pinturas rupestres de Altamira, considerada a “Capela Sistina da pré-história”, foram realizadas entre 16.500 e 14.000 aC. (18.450 e 15.950 AP). Há hiatos de tempo mal explicados.