quarta-feira, junho 11, 2008

CONSIDERAÇÕES SOBRE UM CIGARRO E A RAÇA

A política em Portugal, arrastada pelos partidos constituídos, já não parece corresponder ao papel de zelar pela boa governação, projectos em curso, relações institucionais e do país no contexto das nações. Num ar menor de folhetim, afectados de forma inquietante e patética, por vezes ridícula, os políticos são minimizados pela comunicação social e pelas mal informadas rábulas do povo que circula nas calçadas, entre passos para nada e posios nos cafés. O desvio de vários projectos, derivados do labor diário, é demagogicamente sustentado e engordado por jornais de pena fácil e muito desejo de vender, colocando (como o outro com o socialismo na gaveta) a deontologia na algibeira ou no cestos dos papéis. Lembro a famosa história do cigarro fumado por Sócrates, primeiro ministro, num avião que fretara para viagem oficial à Venezuela. Há quem diga que ele podia ter esperado que a aeronave aterrasasse, pois naquela República, apesar de muitas outras restrições, ainda se pode fumar em liberdade. Ora este cigarro, fumado a bordo por Sócrates, representando uma transgressão da lei que o próprio assinara, é novo pecado certamente, o Vaticano o dirá, tornou-se o assunto dos dias seguintes, ocultando quase por completo o sentido da visita oficial, tratados ou protoclos assinados, se tal projecto era defensável ou não e em que pontos.

O último incidente deste tipo, creio que no dia 10 de Junho, é sem dúvida mais perturbante, talvez mesmo de base neurótica ou na linha demagógica que leva muitos portugueses a comer pipocas no cinema, aliviando-se da leitura das legendas, por analfabetismo situacional ou puro rompimento da memória dos chamados bons costumes.
Aconteceu que o Presidente da República, assediado bem de perto pelos jornalistas, balbuciou que o dia não se destinava a declarações políticas; o dia era reservado à evocação da raça, aos nossos grandes homens da gesta dos descobrimentos, Camões e comunidades portuguesas espalhadas por todo o mundo.
Jornalistas e populares amargurados não pensaram em mais nada; alguém soprara: «Ouviram o que ele disse? Falou na raça. Um Presidente não pode ignorar as conotações execráveis que aquela palavra implica, desde a xenofobia, muitas discriminações, arianismo de outrora.» E não se tem falado noutra coisa. Os camionistas vão engolir a indignação pela famosa palavra, mas, en- quanto ela sobrou para a política e falta de outros avisos, viram-se coisas de um humor inexcedível: na televisão, por exemplo, um comentador da direita esgrimia argumentos com um representante do Bloco de Esquerda. Este senhor, embora com cascatas de palavras inovadoras, parecia um padre cheio de pudor e alguma indignação perante algum palavrão de certo menino ladino pousado na cauda da missa. Estive há pouco a ler o discurso do Presidente, que o Dário de Notícias publicou na íntegra e sob o título «O QUE CAVACO DISSE E DO QUE ESTAVA REALMENTE A FALAR». Entre outras coisas, e sem recurso à palavra raça, ele evoca a história do país, as quedas superadas, enviando alguns recados ao Governo e apelando para um recomeço de exigência e rigor, reapropriação do «imenso património que herdámos e de que progresso justificadamente nos orgulhamos», transformando-o num verdadeiro instrumento ao serviço da prosperidade do nosso povo».
Então e a raça? Era o Estado Novo que usava essa palavra para significar outra coisa, memória indirecta do fascismo e do nazismo? E depois? Teremos que ser reféns para sempre dessa ignomínia? Inventamos sinónimos, sucedâneos precários e pequenos? Os intelectuais que se magoaram com o perigoso «lapso» do Presidente deviam ter cultura para separar a recuperação de palavras recontextualizadas e não para, sem verdadeira alternativa, rasgarem o verdadeiro sentido dos factos. Este fenómeno, de escuras idiossincrasias, alastra cada vez mais entre nós, enquanto os seus promotores vão elegendo enviesados léxicos e muita discriminação contra os analfabetos do nosso quotidiano. É por estas e por outras que os pedagogos insistem com a Ministra da Educação para tornar obrigatória, aí pelos sete anos, a memoriação bem consolidada da tabuada. Parece que é importante para o cérebro. E para ordenar, cronologicamente, os factos históricos e o sentido das próprias palavras.

1 comentário:

jawaa disse...

Esta é a grande pobreza do nosso país.
É a nossa vergonha: a iliteracia de alguns jornalistas - não direi de todos porque tenho muita consideração por alguns, poucos.