quarta-feira, junho 18, 2008

A IRLANDA VOTOU NÃO AO TRATADO DE LISBOA


Quanto mais penso na imensa extensão de cordame embrulhado nas intempéries, assim, mesmo à beira Tejo, em Lisboa, cidade cujo nome foi atribuído com júbilo ao tratado europeu, não posso deixar de rever o complicado processo a que obriga a oficilização de tais documentos, tornando-os legíveis e funcionais, ancoragem muito difícil, porque todos os países membros da União Europeia têm de ratificar por unanimidade a peça, quer através de referendos, quer no quadro dos respectivos parlamentos. É inacreditável imaginar-se como possível e rápida a ratificação de uma peça destas, sobretudo tendo em conta que há países que estão obrigados a proceder à decisão (por razões constitucionais, o que acontece na Irlanda) através de referendo, enquanto outros podem optar apenas pelo parlamento. Vinte e sete países a prestarem honras ao sim, acto que tanto se defendeu na conclusão do Tratado durante a presidência portuguesa, lembra uma espécie de birra revolucionária ou utopia universalista, porque nada disso algum dia será transparente, seja qual for a globalização que amacie e torne obedientes tantas diferenças de identidade, cultura, urgência. Ao falar-se nos valores do sistema democrático faz-se porventura justiça a um antigo processo de governar as sociedades. Mas há sempre nuances, heranças muito antigas, instituições tocadas de outras sensbilidades, um modo de ser, entre latitudes, inquebrável para certos efeitos da história e da qualidade de vida, a subtil característica, a mais funda, que distingue os povos e as nações. Isso não impede que trabalhem em conjunto, em aliança, federadamente, por exemplo, mas tal escolha a não alterar a necessidade de sustentar as marcas indeléveis, problemas palpáveis a considerar compensadamente por cada excepção a um universalismo de pedra e cal.
Por muito evoluídos que sejam alguns países do norte da Europa, a verdade é que também esses não didferem muito quanto àquela casca de civilização que envolve a humanidade e que, durante as dores mais graves, rompe e nos desvia a todos do tal homem novo cujas lendas pintam sob o tecto galáctico de todas as utopias. Um Tratado como o que foi referendado na Irlanda e recusado com um rotundo não pela chamada voz do povo é o mais líquido acontecimento da nossa verdadeira natureza. Não há nenhum povo que possa assumir a responsabilidade de referendar projectos muito complexos e que só estão ao alcance de uma pequena parte dos cidadãos de qualquer comunidade, entre as mais evoluídas e as que vivem no limiar da cegueira. As questões susceptíveis de serem resolvidas dessa maneira obrigam sempre à formação prévia, esclarecedora, capaz de formar a base de lucidez e reconhecimento das questões a votar, permitindo assim um máximo de verdade nos resultados finais. Oiço as mais disparatadas vozes sobre este Tratado que já entrou em crise pelo voto negativo, não ratificador, que os irlandeses lhe atribuiram. Todos estes problemas envolvem uma vertente técnica, de especialidade, que inviabiliza a beleza do povo todo senhor do que vai fazer, como e porquê, depois de rejeitar as campanhas tóxicas pela negatividade ou a possível grandeza de uma escolha positiva, apesar de certas dúvidas ou mesmo renúncias. A Europa não se desenvolveu dessa maneira: escolheu-se em função de evitar as incomodidades dos tais apocalipses quotidianos, emoldurando alguns direitos principais, os valores humanos e de cultura, mas deixou-se envelhecer, imaginando que a sua longa história pode superar agora problemas de tão infinita complexidade. O referendo serve para questões que os povos já podem abarcar, ainda que na via de alguma incerteza, no plano da consciência decisória.
De resto, no plano de uma União Europeia, tem de se mudar de paradigma, como diz agora toda a gente, no governo, nos cafés, nas universidades, no futebol. Tem de se sacudir as migalhas dos excessos e limpar o espaço dos detritos que os ventos da história empurram em todas as direcções. Acabar com a unicidade fundamentalista, com a proliferação de normas, birras, cotas, fingimentos através do pormenor, essa idiota burocracia com a qual se julga ganhar uma força geral capaz, uma viabilidade de sucesso entre todos, um entendimento aceitável, isso sim, creio que permitiria conservar os antigos patrimónios da nossa verdade identitária. Acabe-se com esse eufemismo perverso que troca competição por competitividade. Os povos não têm de competir nem de crescer. Evoluir não é crescer. O desenvolvimento das nações pode acontecer sem obesidade e no sentido de um verdadeiro nexo entre enoção e razão. Penso muitas vezes na Noruega e só me ocorre a nitidez da desmassificação. De contrário, o homem acabará por implodir, pessoa a pessoa, como acontece num vídeo (MAX) que ilustra certa composição musical e mostra os restos de todas as monumentalidades, televisões a trabalhar continuamente, sobre pedras, muros e carrinhas de acampar. Tudo se resumia, nessa altura, a uma tecnologia de sonrevivência e alienação.

1 comentário:

jawaa disse...

Gostei muito de o acompanhar neste passeio pela Europa em construção, falando até de federalismo, uma palavra que parece não agradar a ninguém, mas para a qual terá de ser inventado um sinónimo, para isto avançar.