terça-feira, agosto 08, 2006

FUNDAÇÃO INFUNDADA

Guerra Civil Salvador Dali
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Esta obra fabulosa de Salvador Dali poderia servir de base a uma grande instalação a construir em qualquer dos nossos espaços museológicos - com a vantagem de nos ser dado a ver nela os terríveis males do século passado, as dantescas guerras e os milhões de mortos, advertindo as gentes de hoje, ainda embrulhadas em panos manchados de sangue, para os sinais do apocalipse que parece aproximar-se, trabalhado pelo homem e pela própria nNatureza. Artistas importantes, quer no passado, quer nos dias que correm, seguiram e seguem este caminho - em parte como Picasso com a Guenica - enquanto outros, conceptualmente, o fazem de forma obscura, algo reticente, ao mesmo tempo carregada de angústia colada ao fascínio. E tudo isso me ocorre agora, duvidando dos sonhos e da arte como verdade, ao ler uma notícia sobre Cabrita Reis, artista que se tem notabilizado no nosso país e no estrangeiro, por potencialidades de génio próprias e por acenos e apoios que em Portugal se concedem aos privilegiados, mesmo correndo o risco da desconstrução moral como sucedeu há bem pouco tempo com Maria João Pires, pianista que o país venera e que ela, generalizando, tratou de forma indecorosa, já instalada no Brasil para onde partiu definitivamente, como os reis de outrora - ou os ricos, património às costas, também viajando para aquele país (tão português que nem sabe) na altura conturbada do pós 25 de Abril de 1974.
«Esvaziar-se a grande galeria central do Centro de Arte Moderna Azeredo Perdigão tornou mais pertinente as dúvidas que existiam sobre os planos para o respectivo museu e a sua colecção, além de também ter vindo sublinhar a falta de uma exposição de primeira grandeza no início das comemorações do cinquentenário da Fundação Gulbenkian. Mas o talento e o brio de Pedro Cabrita Reis serão certamente suficientes para ocupar o espaço que lhe foi entregue por Rui Vilar, com vista à criação de uma instalação de grandes dimensões que aí vai ficar exposta até Abril de 2007. Cabrita Reis está diariamente no CAM a instalar à vista do público a sua obra, a que chamou Fundação, com recurso a alguns materiais e objectos vindos dos aramazéns da Gulbenkian e usando também paredes de tijolo, estruturas de acço e lampadas néon. A inauguração será só no dia 15 de Outubro»
(revista actual, Expresso, 5 de Agosto de 2006).
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Estas atitudes, tomadas entre nós num circuito intermitente da megalomania, aplica-se por inteiro ao actual caso (novo caso) de Cabrita Reis, e é, com efeito, de uma desproporcionalidade gritante, coisa gigantesca onde «flutuam» os materiais do costume: tijolo, madeira, aço, e o muito reaparecido néon. Sou admirador do percurso do autor, tendo seguido a sua produção e reflectido sobre ela, mas para comemorar os cinquenta anos da Fundação Gulbenkian não era preciso, nem talvez conveniente, voltar a isolar o trabalho de Cabrita Reis, como se fez em Veneza, como se faz quando calha, num dos mais fortes cultos de personalidade que as artes também perfilharam outrora, aliás bem assumido e bem gerido pelo autor no que lhe compete, em termos artísticos e pouco mais. A problemática ultimamente abordada por Cabrita Reis inscreve-se em modelos estéticos da actualidade e a prestação dele, em volta de tal campo, é culturalmente muito inteligente e bem coordenada, saborosa na encenação que faz das suas próprias coisas e de si mesmo: ali estava ele, na fotografia da revista, de pé, sem capacete de protecção, fato escuro, um charuto entre os dedos, instalando a obra ao vivo, necessariamente com apoio de operários qualificados. Dos materiais já se falou, juntam-se por uma lógica que nem sequer é recente, e aos quais Cabrita Reis adiciona por vezes coisas capazes de importarem para o domínio do absurdo, restos ou memórias da pessoa humana no seu detalhe anímico.
Sem excluir Pedro Cabrita Reis, se ele aceitasse estar com os outros, penso que esta comemoração deveria aspirar ao que foi a abertura da Gulbekian, as centenas e centenas de artistas que ajudou, as interactividades que gerou: então justificava-se esvaziar o museu e reconstruí-lo de forma plural, na diversidade de meios e explorações, portanto pedagogicamente, científica e poeticamente, onde muita gente se poderia reconhecer. Descontando a desavisada, mas eficaz e grandiosa, construção de dez estádios de futebol, o sentido nacional da obra, que era obviamente de todos para todos, como se viu, agarrou a população numa verdade interior, numa dimensão que Portugal, macerado do século XX, parece sentir necessidade de reencontrar, mesmo imolando-se por vezes no consumismo supérfluo e nas viagens pseudo-turísticas. Serão poucos, apesar de muitos, os visitantes que irão circular durante um ano em volta da soberana instalação de Pedro Cabrita Reis.
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1 comentário:

Betty Coltrane disse...

Bem, o que é que posso dizer? As suas palavras são bastante lúcidas, conhecedoras do meio, como é óbvio. Estas questões assumem uma importãncia grande para mim, enquanto estudante, mas por enquanto não tenho um suporte intelectual e cultural sólido o suficiente para me poder pronunciar sobre elas... Deixo isso para si, e para outros que têm autoridade para o fazer, enquanto a minha geração vai amadurecendo e assimilando estas influências e pontos de vista.

Neste momento valorizo a internet enquanto forma rápida e barata (muito importante) de expressão e comunicação, embora não seja de facto a minha favorita...

Até uma próxima, espero