quarta-feira, junho 25, 2008

APELO POR RUÍNAS E FLORES SELVAGENS


Em criança, quando começaram a demolir duas casas perto da minha, eu sentia um secreto desejo de pedir à vizinha da frente, muito amiga da minha família, que me deixasse ir ver as obras em curso. Sempre sorrindo, ela levava-me até à janela (com as obras na frente) e eu ficava com o nariz colado ao parapeito. Logo no primeiro dia, a vizinha deu por isso e foi buscar uma pequena cadeira de tabúa, encostando o espaldar à parede. Fez-me subir, disse para eu ter cuidado a fim de não cair e foi à vida, na cozinha ali perto. E eu ficava fascinado, olhando os operários em cima das paredes e escadas, com picaretas, desmantelando tudo pedra a pedra. Nas paredes que ainda restavam, havia nódoas da presença de quadros entretanto retirados, além de pregos e bases para lâmpadas eléctricas. Com o tempo foram restando as portas interiores como molduras vazias e o entulho aumentava ao ritmo do trabalho daqueles trabalhadores equilibristas. Como já escrevi uma vez, este espectáculo (não sei se motivado pelo cinema) ficou-me profundamente gravado na memória e nunca mais deixei de me sentir fascinado quando encontrava ruínas na paisagem ou em pinturas e bilhetes postais.
Mais tarde, quando isso me acontecia, perguntava a mim mesmo que razão haveria para aquele apreço, para aquele apelo, ao contrário do desencanto que sentia perante as flores, ornamento usual nas casas, retomado em fresco. Por mais estranho que pareça, e porque desenhava com prematura qualidade, este desapego pela beleza óbvia das flores, acontecia sempre e deixava-me intrigado. No tempo em que começou a ser um hábito os habitantes da pequena cidade do sul (onde nasci e vivi) fazerem grandes passeios aos pomares, pelo rio ou pelas veredas, ou também à serra, junto da primeira barragem ali construída. As casas de lavoura, pobres, abandonadas, continuavam a fixar os meus olhos. E foi nessa altura que descobri outras flores, lindas, mais verdadeiras do que todas as outras, flores nascidas ao acaso, secas mas vivas, ásperas, com pétalas que pareciam a protecção do milho, tufadas e coloridas em tons abertos num centro geométrico. Eram lindas as flores silvestres, essa vida muito bem integrada no ambiente e com um desenho ao mesmo tempo solto e rigoroso. Invariavelmente, quando percorro as veredas da serra, perto da cidade, apanho flores dessas e coloco-as em jarras como as pessoas fazem com as outras, decorativas, macias, e aparentemente artificiais. Mas as flores que eu arrumo na jarra não precisam de água. Meses mais tarde continuam na mesma, perenes. Também fiquei a gostar destas formas naturais, tanto como os destroços das velhas casas.

fotografias de Miguel Baganha

3 comentários:

naturalissima disse...

Lindas flores secas, mas vivas, acompanhadas por uma história de extrema sensibilidade.
Duas formas de expressão, tão semelhantes no sentir e tão bem expostas aqui.

Longe de estar ao nivel da sensibilidade artistica do tio meu, confesso que sempre senti o mesmo desde muito nova, estas passagens aparentemente nostalgicas... sempre me fascinou ter dentro de mim, estas sensações. Faz-me sentir melhor um lado da vida diferente.
Não sei explicar melhor :)

Não posso deixar de dar os meus parabéns ao Miguel ;-) por este momento bonito que lhe ofereceu.

Beijinhos muitos
fique bem
Daniela

Miguel Baganha disse...

« Há por vezes, na soma das matérias ou na desistência de algumas soluções, uma incerteza dolorosa, tempos difusos, a nostalgia de muitas outras viagens assim. »

( Excerto do livro: A culpa de Deus, de João Rocha De Sousa )

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Esta viagem nostálgica só foi possível, porque as folhas onde o mestre escreveu a sua infância, são como as pétalas das flores selvagens.

Não caem, por serem perenes na sua memória.

Um abraço,

Miguel


P.S. Parabéns pelo belíssimo raccord entre texto/fotografia. Perfeito.
Boa picaretada ;-)

jawaa disse...

Tem razão quanto à verdade das flores silvestres, mas eu prefiro as coloridas e quase me revolta a adulteração que fazem com elas, presentemente.
Uma ternura, este desenhamento de si.