rainha do antigo Egípcio, 1458 a.C.
Enquanto o corpo responde aos nossos impulsos e todas as capacidades do ser se manifestam em plena luz, pensar na morte é como quem olha distraidamente, e sem interesse, para uma fotografia vulgar de um vulgar desconhecido. É porventura objecto ocasionalmente achado e brevemente, se houver condições próximas, atirado para um caixote público do lixo. Esse incidente, como muitos outros que poderiam colocar-nos diante de quem seremos ou a que distância estaremos do fim, só começam a alcançar contorno, codificação, um balanço entre uma vida depois da vida, no instante cobarde em que nos socorremos de um fio desdramatizador da inevitabilidade, a despeito das crenças sobreexcitadas no ser eterno, lugar ou lugares onde revitalizariamos uma alma imortal, retornando, segundo alguns movimentos, a este quotidiano que nos cerca e que sabemos em declíneo. Muitos de nós assim pensam, de facto, porque a suprema qualidade dos seus instintos, percepções e sensações parece não poder ser negociada, nem transferida para sítios do silêncio e do não retorno. Terá sentido uma vida para nada e uma morte igualmente para nada? Isto ofende a razão. Ofenda os sentimentos e até a dignidade com que por vezes assumimos a vida. Há portanto uma fase da vida (pois já conhecemos a esperança dela em termos estatísticos) em que questionamos o estar, o ser, viver sem prémio -- ou indagando as possiblidades da transmigração, da sobrevivêmcia da alma e portanto do indivíduo.Onde e como não sabemos? Nem o que faremos, nem se de facto retornaremos aqui pela lei da reencarnação. Os panteístas gozam aquilo de que podem dispor até a uma dissolução da consciência. A vida do espírito nas mais antigas e abstractas religiões do mundo, embora passe pela Terra, tem a sua evolução apontada por o Todo, o Nada, o Nirvana. E entretanto, lucidamente, os ateus desvalorizam toda a sobrenaturalidade e podem assumir éticas comportametais, de solidariedade, responsavelmente. Perto da morte, quando a doença produz dores imensas e a cegueira entre elas, em plena zona terminal, muitos, crentes ou ateus, já concebem a eutanásia -- ou a ajuda no limite mais cruel desse limite.
A fotografia que publico com este texto corresponde à múmia de uma rainha, ignorada num sotão do Museu do Cairo, e que foi identificada como Hatshepsut, que viveu e exerceu o poder num Egipto de entre 1479 e 1458 antes de Cristo. A ciência tem desenvolvido extraordinárias tecnologias neste campo, no estudo de fósseis, corpos, múmias, adereços e sonhos apodrecidos. O próprio método do ADN, pelos estudos de Zahi Hawass, tem aqui o seu papel; enquanto outras metodologias nos permitem perceber toda a vida destes mortos e a incontornável fé que depositavam na sua continuidade depois da morte, sendo então profundamente tratados, trabalhados, em ordem a uma idade longínqua em que voltariam ao seu dia a dia. Veja-se como o homem sempre se confrontou com esse buraco negro onde soçobram, sem retorno, astros e sistemas planetários inteiros -- até faraós. A «eternidade» de Hatshepsut é esta imagem, é este magnífico silêncio, é esta inalienável brevidade.
Enfim, fica-nos a curiosidade dos estudiosos, saber que esta mulher tinha o hábito de se vestir de homem, de fingir bigode. Foi uma figura das mais poderosas do antigo Egipto (mais do que Nefertiti e Cleópatra). O seu templo funerário, em Deir et-Bahari (na zona do Vale dos Reis) é um dos monumentos egípcios mais visitados no presente, o que talvez permita alegorias sobre o outro lado da morte ou a perenidade dos restos mortais de alguém, conservados, existindo assim, enre visitas, não se sabe até quando. Uma «etermidade».
5 comentários:
O desconhecido para além da vida... se é que existe alguma coisa depois desta...
será sempre um mistério por desvendar?
beijinhos
Caro amigo, agradeço desde já a atenção que presta aos meus comentários.
Quanto ao mail eu penso que este está a funcionar paulosaboga@sapo.pt ou este
dejero@hotmail.com
A morte...O verdadeiro, o único, aquele sobre o qual todo o ser pensante pode inventar soluções que encontrem seguidores, o mistério primeiro. Qual terá sido o sentimento mais forte nos primeiros homens, o nascimento de uma nova cria ou a morte de um membro do clã nas presas de um predador?
Há quem defenda que a grande diferença entre Cristãos e Muçulmanos está no valor que cada um deles dá à morte. Par os Muçulmanos é óbvio que o valor dado à morte é muito mais dignificador. Na sua maioria os cristãos Ocidentais são muito mais pragmáticos, viva-se bem que a morte é certa.
Não deixa de ser interessante referir que todo o conhecimento da civilização egipcia assenta em achados arqueológicos deixados em túmulos, onde, para além do corpo e das riquezas se deixava o testemunho da vida e das técnicas utilizadas no dia à dia, entre elas a ciência do pão, base de todo o poder.
Um abraço e até sempre!
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Já decidi que não quero essa eternidade para mim, incomoda-me o vasculhar e utilização de cadáveres, reconhecendo embora essa necessidade para a Ciência.
É sempre um prazer ler a sua escrita a que chama barroca, ela é intensa, transmite claramente uma preocupação com «essa derrocada do mundo que eu vejo nas sociedades, no afogamento do planeta(...)uma
vontade qualquer (surda) de deixar um testemunho para os outros, entre alertas e a memória do amor.»
Quem escreve assim não é gago, já dizia meu pai, citando outros.
A minha paz, tenho-a, mas não é bastante,nem poderia ser.
Depois, também quero deixar testemunho, quero um mundo melhor.
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