O incidente que se narra a seguir é semelhante a muitos que acontecem nos últimos anos na Lusitânia e no Allgarve. Por qualquer pequeno detalhe das grandes decisões, os políticos e os empreendedores vão para o Campo Pequeno ou para a Assembleia da República e desenrolam as suas fitas de argumentos. São todos muito habilidosos, a inventar túneis, a berrar porque querem o Alta Velocidade, comendo pouco a pouco o que resta de hortaliças para atravessar o pequeno país de autoestradas. Todo o planeamento do território baseia-se nas autoestradas, no abandono das vias férreas e na acumulação de montanhas de cimento mesmo junto ao mar. Há dias, num programa de televisão, um ministro explicou que o grande centro de desenvolvimento é Lisboa, numa circularidade em torno da chamada frente marítima a qual se estende até perto de Aveiro e Sines. Porque não vale a pena polvilhar de casinhas o interior, de alto a baixo, para os lados de Espanha, porque Espanha já fez isso, com as respectivas acessibilidades, e em breve terá cidades por lá, o que sugaria o interior português dos pequeninos.
LISBOA FARAÓNICA
Ontem, quando cheguei a Lisboa, fiquei encantado com o aeroporto. Espaços modernos, renovação atempada de muitas estruturas, lugares bem instrumentalizados e um ambiente de razoável consistência familiar, tudo a condizer com as dinâmicas e as sinalizações. A minha mala saíu na passadeira em cerca de meia hora, o que é muito bom para a Lusitânia que nos amolava os miolos e dilatava os calos. Lembram-se? Era nos correios, na Caixa Geral dos Depósitos, nos Bancos em geral, nas caixas dos super-mercados, nas entradas em Lisboa (antes do túnel), no caminho para as praias, nos percursos interiores da cidade, ou em certos restaurantes tipo churrascaria. Para não falar nos antigos notários, excelentes funcionários públicos, também na Câmara Municipal, sobretudo com licenças e papéis vulgares, daqueles que dizem quando a gente comprou o primeiro tijolo e coisas assim. Bom, vendo bem, meia hora por uma mala que viajara no porão de um jacto civilizado, com cinquenta pessoas a bordo, não se pode dizer que seja um avanço muito significativo. Ao chegar à rua, já a noite tombara sobre a portentosa gare, pressentindo-se as luzes da nova cidade envolvente. Um taxista perguntou-me se eu precisava dos serviços dele. Um pouco enjoado de ter que completar vários contactos áquele hora, voltei-me para o taxista, que já andava ajoujado em volta da minha mala, e perguntei-lhe se na cidade portuária não haveria alojamentos disponíveis. E ele, sorridente: «Não, não é preciso ir tão longe, isso da zona portuária é demasiado longe e não está bem equipada de hotéis.» Insisti: «Mas eu não estava a falar do rio, pensava hospedar-me aqui perto». O homem largou logo a mala e cantarolou o que achava: «Ah, isso é outra coisa, uma corrida de nada e tem a sua malinha num bom hotel, aliás numa área onde poderá escolher o equipamento que achar mais próprio». Consolei-me pelo bom entendimento e pedi-lhe que me ajudasse a carregar a mala.«O senhor pode levar a mala denro do carro, a seu lado, e não terá que pagar taxa de bagagem. Na bagageira já é outra coisa.» A minha pele irritou-se um pouco. «Bom, que diabo, ponha lá a mala aí ao lado, no banco.» Entrei pela outra porta e ordenei ao lusitano: «Pronto, vamos lá então para Lisboa» O outro voltou-se para trás: «Em Lisboa já nós estamos, a bem dizer. Tem alguma zona ou rua em particular para onde queira dirigir-se?». Senti um calafrio. Sacudi os ombros: «Não, ou melhor, sim, quero ir para essa zona onde diz que há vários hotéis à escolha». O tipo não teve mais dúvidas e arrancou, começando a rodar por uma longa avenida, mais residencial do que de serviços, aliás quase vazia embora razoavelmente atapetada de carros. Pensei para com os meus botões: «Que raio, levaram quase meio século a fazer o aeroporto, mas agora as envolventes são maiores do que o próprio.» A certa altura pressenti um cheiro a sardinhas ou coisa parecida, lembrei-me dos bairros populares, e olhei para as grandes estrutras, à direita, talvez de escritórios, com portas de ferro e alguns cromados, pátios contudo vazios de seguranças e porteiros. «Estamos ainda muito longe?» - perguntei para a frente. «Não senhor, estamos quase; acabei de entrar na aveida da República». Fiquei atónito: «Mas já estamos na avenida da República, em tão pouco tempo?» E ele, num riso breve, a mascar um palito: «É para que veja. Então fizemos o 25 de Abril e ficávamos de mãos a abanar? Cá vamos nós, ao lado das avenidas Novas: há velhos por aí que voltaram do Brasil e encheram-lhes os bolsos outra vez». Olhei de esguelha, apertado entre a mala e o lado da porta: lá estavam os bolos de noiva, os que restavam, mais Bancos, mais super-mercados, e em frente, apertada por dois colossais e estalinistas prédios novos, uma estátua de bronze, num miniatural plinto de calcáreo. Perguntei, ansioso: «E então e o Saldanha, a praça do Saldanha?» O lusitano gargalhou: «O senhor já deve estar almareado: então não vê que estamos a atravessar a praça do Saldanha? Olhe como ele aponta.» Dilacerado, cerrei os dentes e clamei para dentro da minha cabeça: «O que ele está é a mandar destruir toda esta trampa altíssima, feíssima, na esperança de reganhar a sua querida praça. Fechei os olhos, encostei-me no banco, uma nuvem de confusão invadia-me a consciència, enquanto a memória, emigrada durante largos anos, se despojara no cansaço da chegada. Lisboa parecia uma coisa texana, destituída de nexo, armadilhada por milhares de cartzes néon no pior estilo de Las Vegas. Uma pequena volta mais «aquele é o túnel do Santana» e estávamos à porta de um hotel de muitas estrelas, o «Altis». «Aqui estamos. Este é um dos melhores hotéis, no centro de Lisboa. Quer ficar aqui ou procurar um pouco mais?» Abalado como nunca, respondi-lhe que um pouco mais não era nada e que podiamos sair. O homenzinho fez tombar a mala para o chão, de esquina, mas já se aproximara de nós um empregado do hotel. «Então quanto lhe devo?» Ele afagou o nariz, olhou para dentro e respomdeu: «Oito euros». Fitei o pequeno lusitano com os olhos em brasa: «Então o senhor vem da Ota até aqui e só me leva oito euros? Devem ser oitenta, pelos vistos». O taxista deixou cair o beiço e ficou arrasado, de olhos arregalados, incapaz de falar. O empregado do Hotel colocou a mão direita no meu braço esquerdo e falou com brandura: «Tem estado fora do país?» Puxei o braço:«Sim, claro que sim». O tipo voltou a pousar a mão no meu braço e disse pausadamente: «O senhor taxista tem razão. Ele veio do aeroporto da Portela. O caso da Ota ainda está por resolver. Estuda-se uma das últimas hipóteses que é criar uma grande ilha artificial no Tejo e aí implantar o novo aeroporto. Já não fica só a norte e servirá os dois lados, respeitando os aquíferos e os postulados ecológicos, com a vantagem de estar tão perto de nós como o da Portrela. Atónito, perguntei em verdadeiro estado pré-comático: «E o aeroporto da Portela?». Ele sorriu. «Não há dinheiro para o explorar ao mesmo tempo do futuro equipamento. Vai a baixo, com certeza. Diuscutem agora o aproveitamento desses terrenos. Pensa-se que talvez umas casinhas, uns bairrozitos, mas com zonas verdes e a Feira Popular.» Senti que perdia os sentidos e só acordei de manhã, sedado, num quarto enorme e mal arrumado, dentro do qual se ouvia, de quando em quando, os aviões em aproximação de aterragem.
2 comentários:
Este post merecia ser publicado num jornal, em jeito de crónica.... para que mais gente o lesse...
Um abraço
Magnifico texto...Sem comentários...
Os meus parabéns caro amigo!
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