Ser demente não tem importância. O que tem importância é ser demente sem honra, é perder a honra. A menina dorme com o velho, larga tudo e vai a correr para a cave onde ele mora, atirando-se para a cama, toda nua, sempre que lhe apetece. Ele leva todo o tempo do mundo para responder àquele desejo. Ambos sabem que esse pecado não compromete a salvação, e isso também dizem os novos da nova teologia. Trata-se de um acto que sempre teve e tem apenas a ver com a nossa condição de bichos. Há quem lhe chame «pouca vergonha» e há quem diga que tudo se resume à legítima busca do prazer, o qual anda frequentemente associado à felicidade. A Rosa leva porrada do marido e nunca se queixou. A fome dela pode com todo esse peso, cada dentada nas mamas aguça-lhe a onda de gozo que entra nela, por baixo. São coisas vulgares e misteriosas. Está sempre só, a Rosa, leva porrada mas não muda de homem, esperando pela noite e sabendo qual o trabalho sujo do marido e o nome dos gajos que foram para o Tarrafal pela língua dele. Já lá estive, desgraçadamente por causa de um erro judicial, mas eles não sabem distinguir um vagabundo de um doido honrado. A «frigideira» acaba com a gente em dois tempos. Mas o importante é salvar a verdade, se for caso disso, dizendo estrategicamente a mentira. É o que fazem os pintores, os escultores e até mesmo os poetas, em verso. As pombas de pedra não voam mas os artistas inventam a forma de parecer que sim. Há cada vez mais aves negras voando neste quadrado de céu. Serão corvos? Dantes havia mais pombos, pombos simpáticos, diria mesmo indispensáveis, matreiros umas vezes, coniventes quase sempre, rodeando os nossos pés, passos curtos, partidas rápidas. Até que um dia foi a hora do Cunha, professor aposentado, que sabia muitas coisas sobre pássaros e passeava pelo Parque Eduardo VII. Morreu de um derrame cerebral, as artérias inchadas, a voz de canhão, a bondade escondida na fúria. Os alunos gastaram dois séculos para perceberem o que ele queria dizer com o destaque da palavra inquietação. Inquieto é mundo, és tu, e até os desenhos borrados que os filhos-família rabiscavam na sala do Cunha, Mestre de uma aula fatídica. Morreu, caído no banco, rodeado de pardais. 1
1 fragmento de «O Bolor e as Reformas de Papel», de Rocha de Sousa, autor igualmente dos desenhos e fotografias publicados neste blogue, excepto os documentos da imprensa ou televisão.
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