domingo, junho 25, 2006

GLOBALIZAR OU DESENSINAR


Um dia, na longa depressão do país, os poderosos foram desalojados do seu molde, destituídos portanto, presos preventivamente, por pouco tempo, para logo deixarem o território nacional às mãos de outros poderosos, porventura bem aventurados, que proclamaram optar pela liberdade em democracia, pela descolonização das Províncias Ultramarinas e pelo desenvolvimento da Pátria. Foi assim uma espécie de festa, um primeiro de Maio irrepetível, a súbita desconstrução do Império e do Regulamento de Disciplina Militar, capitães e tenentes a mandar em tente-coronéis e coronéis, e até mesmo em genrais, proclamando-se, ao jeito de um Guevara lusitano, isto é, em proposição romântica, donos provisórios do mundo português, do alto das terras à tribunas da revolução.
Foi assim que muitos protagonistas, julgando escrever a história, se apropriaram das estruturas educativas, moderníssimos, para as colocar ao abrigo de um eixo unificador. A par de tal tarefa, grupos escolhidos, sempre enquadrados por militares, calcorrearam veredas entre aldeias para explicar a própria revolução, para falar do homem novo, dos amanhãs que cantam, das nacionalizações que permitiriam a universal libertação do espaço nacional em nome da justa distribuição dos bens, porque a terra era daqueles que a trabalhavam, incluindo grandes empresas bem conhecidas em todos os aspectos pelos operários que lá trabalhavam. Portugal tornou-se a breve trecho, entre esplendorosos fins de dia, numa caravela adornando, o próprio pano a tocar a água do Tejo, barco pequeno empenhado, num último esforço, em aportar à areia das sete colinas e aí renegociar a história e os direitos do povo.
Os direitos são muitos, todos o sabemos, prioritários em qualquer revolução. E por isso se procurou, desde logo, alfabetizar as gentes solitárias das montanhas, desde as primeiras letras e as verdades simples da política. Enquanto um novo exército de novos pedagogos desensinava os primeiros Governos Provisórios, o verdadeiro sentido das velhas cartografias, entre escolas que ninguém queria, munidas de cursos técnicos cujos diplomas, sem sinais de licenciatura, abonavam aos finalistas uma ração de saber prático, as elites varriam os escolhos - aliás pedras preciosoas pelas quais se tinha acesso tanto ao conhecimento como às tecnologias da criação e da sobrevivência. Mas fora por esse lados, na província e na capital, que gerações e gerações aprenderam o corte das matérias, a ondulação das madeiras, o tratamento dos metais, o brilho dos vidros e o vigor das letras, além da incandescência eléctrica a par de secos livros que os contabilistas tinham de devorar. Estes últimos, mangas de alpaca, foram contudo os mais recrutados pelas instituições bancárias, empresas que investiam neles uma apresentação cuidada no rosto e na fatiota. Um tempo de marketing meio provinciano, termo inicial da imagem viva para mais protagonistas. Eram empregados, nunca seriam trabalhadores, marca social do futuro. Operários nas fábricas, empregados de balcão nas lojas ou nas finanças. Mas os meninos que trabalhavam nas grandes fábricas têxteis ou de calçado, coziam o pão que o diabo amassou e começavam, por seu lado e assim, honradamente por baixo, um futuro talvez mais difuso. Honra, explicava-se com unção, acabado o tempo do pé descalço e dos rebanhos acomoddaos noutras serranias, após missas geladas.
Ensino unificado, então. A revolução, a mudança, a igualdade. Massificação dos infantes discriminados à entrada para o Superior Universitário, ideia de uma Universidade acima dos trabalhos manuais, antiga, clássica à sua maneira, devotada aos possíveis processos de investigação, sempre e sempre laboratórios escassos, com orçamentos em miniatura. Em todo o caso, ninguém largava a liurgia, os actos de pomba e graduação dos docentes. Lá fora falava-se em multiplicação das oportunidades no mundo das nacionalizações-desnacionalizações, confusa reimplantação dos cursos e cursilhos, a par de uma vaga memória montessoriana que libertou os meninos dos exames e ensarilhou os docentes numa deriva de hediondos cruzamentos pelo país fora, saltimbancos do novo mundo em que o trabalho, como vão dizendo os governos, munca mais será estável. As ciências da educação tomam o lugar da pedagogia em directo, parecem as «Pedagógicas» de outrora, e consolidam a invasão dos pedagogos, dos psicólogos, afundando núcleos de cada percurso-curso nos imensos silos dos mestrados e doutoramentos. Nunca mais ahaverá trabalho estável e sólido, o progresso global é assim: daí resultará uma incessante distorção da própria identidade humana. O nomadismo de toda a gente começa a desensinar-nos muito que ainda constitui o superior património do homem. Ele sabe, o homem, que pode mudar, mover-se, desempenhar novos papéis, embora também tenha aprendido arduamente que a família (por agora destituída do seu papel de verdadeira alternativa) se degrada e dilacera aos poucos, assim. Por isso o homem sabe também que qualquer sistema de ensino tende para aprendizagens por cotas, que toda e qualquer aprendizagem (verdadeira, alargada) tem de começar pela descravização da sociedade actual, em ordem a um superior quadro de escolhas, normas e desígnios de responsabilidade.
Globalizar é desensinar.

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