quinta-feira, junho 22, 2006

O CÍRCULO DA QUADRATURA

um problema insolúvel a noite dos sinais vivos











Quando tomei contacto, na altura, com o programa televisivo «A Quadraturado Círculo», antes mesmo de o ver, nunca me passou pela cabeça que ia assistir a demonstrações ou especulações do domínio da geometria. Mas imaginei uma coisa dura de roer -- o que se agravou quando soube que Pacheco Pereira era a figura de proa de uma espécie de debate sem solução. Inscrever um quadrado num círculo não é difícil, mas tornar as suas áreas iguais parece complicado. Lembrei-me daquela maníaca certeza do Almada que afirmava ter encontrado na recôndida convexidade de uma pedra enorme, existente no deserto do México, o sinal cabalístico por excelência, no qual convergiam linhas invisíveis vindas de todo o esboço divino do universo, muitas vezes aí se cruzando em direcção a galáxias distantes, eterna norma que o Mestre parece ter evocado ao «entrançar» as mais diversas figuras geométricas na sua composição para o átrio da Gulbenkian, insidiosamente intitulada «Começar». Aqui se aproximam a cabala artística e o imaginário da ciência após o «Big Ben».
Se Almada Negreiros estivesse vivo e pudesse assistir a dois ou três episódios da série televisiva «A Quadratura do Círculo», diria logo que a geometria da sessão procurava relacionar a análise política com uma composição ruidosa operada através do círculo, do quadrado e do triângulo. Ele encontraria, entre outras hipóteses, uma arrumação por defeito nos pontos relativos aos três participantes no debate; talvez porque a sua relação triangular com a mesa tinha viabilidade completa, mas já era difícil misturar o «pivot» numa simbiose rigorosa, matemática e geométrica, na ausência de um ponto significante . O círculo, esse sim, sendo uma figura absoluta absorve todas as outras.
O mistério da colocação das figuras na lógica do título tem constituído para os espectadores, com efeito, um problema singular enquanto decorre a emissão. Muitos insistem no facto de Pacheco Pereira estar em campo quase metade do tempo, devendo-se tal facto à posição geográfica desse protagonista. Pacheco Pereira acontece sempre como vértice, porventura segundo a ideia de Mestre Almada. No vértice, a que a realização e o próprio «pivot» se submetem, Pacheco Pereira ganha uma imperativa prolixidade circular, sobrepondo-se aos ruídos todos, aliás no modo insidioso ou lasso com que sempre se dirige aos outros, a nós mesmos, cabeça um pouco inclinada, ora para a direita, ora para a esquerda. Nem todos os telespectadores reparam que os outros participantes são remetidos para uma posição sempre lateral: há qualquer coisa de enviesado e secundário neles, pois a verdade é que, nas maiores falas de Pacheco Pereira, seria possível e conveniente fazer planos intercalados dos que estão calados, para se perceber que não sairam da sala nem foram à casa de banho.
O coordenador do programa, pouco telegénico, sentado não se sabe bem onde, exercita, de quando em quando, uma uma nota de pequena sabedoria, inserindo-a nas fendas das falas geralmente baralhadas, como é próprio da vivacidade, da dinâmica, que um programa de televisão deve propor. Quando ele tenta terminar o seu insert oral já a voz de Pacheco Pereira o cavalga, ralacionando-se igualmente com os valores de Pi e de r do círculo da quadratura, pois é esta, segundo diria Almada, a mais adequada designação daquela íntima ou maçónica troca de palavras e rituais. Políticos e política circular: o círculo - resolução de um círculo a um quadrado ou o problema insolúvel. Pacheco Pereira, sempre à espera de falar e sempre a falar na mesma, procura dar consistência verificável ao lado do quadrado, tornando-o vértice de todas as prioridaes. O lugar (cenário) aconchega bem os sacerdotes -- e ocorre-me esta palavra, tanto pela função deles como pelo clima de sacristia em que se confrontam.
Apesar de tudo, entre elipses e novelas que diluem a clareza das opiniões sobre os asuntos, a minha obrigação é a de felicitar Pacheco Pereira por ter suavizado bastante as suas intervenções, embora ainda não consiga apagar a repetida e gritada vontade de ganhar espaço aos outros, aos próprios ouvintes, como acontecia no chinfrim da TSF, «Flash Back», de má memória. É que os ouvintes ou os telespectadores tabém contam. Mal sabe a maior parte deles que Pacheco Pereira se entende bem com a «quadratura do círculo», pois sabe perfeitamente que as suas afogueadas certezas e complexas deduções irão parar inexoravelmente naquele ponto que Almada Negreiros achou no México, debaixo de uma pedra que tinha dez vezes o tamanho dele. E também é certo que ainda ninguém se atreveu a acabar o problema intrínseco do painel «Começar» -- operação que resiste a todos os debates e a todos os ruidos contra a razão. A fala terminal é outra coisa. Por isso o Mestre disse uma só vez: «Há pontos finais».

1 comentário:

naturalissima disse...

este é um dos espaços até ao monento dos mais sérios e dos mais bem escritos que conheço.
chego a pensar com pena que isto é bom de mais para ser/estar num BLOGSPOT.
deveria ser divulgado noutros lugares...
os meus parabéns.
adorava poder escrever assim.
Daniela