domingo, junho 25, 2006

TEMORES E VIGILÂNCIA


No dia das folhas de pagamento fico sentado, à espera, ou dou a volta ao edifício por dentro, no labirinto dos corredores. Na casinha das chaves, utilizando uma pequena mesa de pé de galo, assento aí a folha que me corresponde e levo todo o tempo possível a fazer contas, aumentos, descontos, cobrança da segurança social, e assim. Todos me perguntam a razão de ser deste hábito ou desta exigência. E se eu encontrar um erro? Já fui roubado muitas vezes, e outras coisas e por outras razões, até um gato me levaram - e é por tais casos que alguns de nós ganham este género de manias. Ou melhor: um permanente fio de temor e vigilância. Nunca atravesso uma rua sem olhar primeiro para a direita e depois para a esquerda. É uma questão de verdade. Com as contas é também uma questão de direito.
No caso da Ermelinda, os que me pagam e a polícia dos que me pagam fizeram aqui, por outro lado, centenas de perguntas. Toda a gente dizia que a Ermelinda era muito boa pessoa, que se relacionava admiravelmente com os alunos e os colegas, que tinha amigas no bairro onde vivia, era viúva, religiosa, tranquila, resignada segundo a sua fé, sempre pronta para ajudar os outros. O inspectopr ouvia. O sub-inspector escrevia. Ventura esperava. E se fosse um crime? A vida é muito parecida com um romance policial, eu sei tudo isso em pormenor, no espaço e no tempo, porque li muita literatura de polícias e ladrões, organizações secretas, matanças arumadas por seitas. No caso da Ermelinda, em vez de se suicidar ela podia ter bebido acidentalmente, com outro líquido, o veneno dos ratos. O Ventura impacientava-se e só veio a sossegar quando a polícia abandonou as investigações e deu o caso por encerrado. Ermelinda suicidara-se. Honradamente, aliás. Deixara a casa num brinco e o resto do veneno no caixote do lixo, impratricável. Hoje estou de pé, encostado ao muro de grés sangrenta, e sinto-me perplexo como nunca: o veneno num caixote do lixo é prova de quê? De que Ermelinda se desfez dele, sem grande preciosismo, ou de alguém menos precavido após a cuidadosa encenação da sopa, ou do leite com muito açucar? Eu sei, Ermelinda, também tu tinhas medo da vigilância permanente. Ermelinda, minha boa amiga, que fizeste tu: esperaste ou decidiste.

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