sábado, janeiro 13, 2007

INTERRUPÇÃO VOLUNTÁRIA DA GRAVIDEZ


É verdade que, no pulsar da vida em comunidade, pouca coisa seríamos enquanto gente se ousássemos olhar para o mundo como simples suporte dos nossos mitos, mero espaço dos devaneios do imaginário. Um osso pode começar por ser uma arma de percussão ou de arremesso (como em «2001, Odisseia no Espaço») e dentro em breve aperfeiçoar-se até à lâmina e ao punho. Cumprida a sua função essencial, a ornamentação inicia-se e lavra, em épocas muito posteriores, os cabos onde o punho se personaliza, entre aplicações de metal e caprichosos efeitos decorativos: é o caminho para uma consagração simbólica, coisa diante da qual muitas propiciações podem ser convocadas. Alguns utensílios ou representações casaram-se assim com diversos conceitos. E os conceitos apoiaram a invenção das redes da mitologia, nomeadamente tendo em vista a sagração de elementos estruturais da vida, ela mesma símbolo maior, o que a fez enquadrar uma transcendência que nos finge eternos.
A questão do aborto, que está a ser discutida no nosso país, liga-se profundamente ao cunho sagrado que imprimimos à vida, apesar de nada sabermos sobre a origem dela, nem o seu objectivo, ou que finalidades eventualmente encerra. Vivemos ainda presos à ideia de sobrenatural e à invenção da vida como bem sublime. Curiosamente, a Natureza é menos fundamentalista e engana-se com assiduidade na formação do homem, esquecendo-se de partes do corpo, de capacidades fundamentais do ser, do próprio cérebro. As instituições ditas do espírito, religiosas e aproximadas, encaram a fecundação como irreversível, num atávico fervor de protecção da vida a todo o transe. As mães, que emprestam o seu ventre à obra de Deus, são por vezes surpreendidas com uma gravidez impositiva e não esperada nem desejada. E contudo elas vêem-se rodeadas de uma feroz barbárie em todo o mundo, com milhares e milhares de mortos, vontade de governos, sem consulta de Deus, ou de bandos petrificados ideologicamente. Na incerteza de tudo, as mães «compulsivas» não compreendem porque razão as impedem de interromper, ainda numa fase embrionária e absurda, a proliferação das células dentro de si. Muitas estão à beira da exautão, após outros nascimentos, e ainda têm que suportar os acasos naturais incorrigíveis, o erro humano, natural ou divino. Aqui não há escolha porquê? Porque razão a vida, afinal tão contingente, foi colocada no nicho dos símbolos totalitários?
A enorme quantidade de espermetozóides produzida para a transcedente batalha da fecundação, tão curta enquanto existência, deixa-nos presos entre a fascinação e o fenómeno intrigante. Em boa verdade, que destino reserva a Natureza aos milhares de agentes da vida, da fecundação, que não conseguem penetrar no óvulo da mulher? A lógica dos ciclos naturais, incluindo a desconcertante adulteração de alguns genes, então responsáveis pela sentença de morte vinda de dentro para fora, enfim dirigida aos seres que geraram e coordenaram, é apenas intrigante ou sinal de perdas calculadas sem intervenção humana?
A interrupção voluntária da gravidez é uma conquista como outras do direito e a sua legitimidade cabe ao próprio sentido e qualidade da vida sustentado pelo ser fecundado.

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