quarta-feira, janeiro 03, 2007

POR AMADEO DE SOUZA-CARDOSO



Não vou abrir os livros, dicionários, enciclopédias, tratados. Amadeo de Souza-Cardoso, agora largamente apresentado na Fundação Calouste Gulbenkian e contextualizado com outros autores da sua época e de outras latitudes, mostra-nos bem quanto é importante o nosso patrimóno cultural (entre casos e casos), aliás definitivamente avançado em muitos tempos ao longo do percurso civilizacional que ajudámos a formar nestes últimos dois mil anos. Um país configurado a partir dos movimentos territoriais e vontades de ultrapassar os escassos limites da sobrevivência, dotado de perto de dois milhões de almas, caldeado por diversos povos, unificado na diversidade da sua origem, Portugal não tem que se humilhar, mesmo agora, perante os altos e baixos da sua história e da história que o envolveu. Até porque, descontando os gigantismos alheios, preparados nos grandes actos coloniais e de expansão, a leste e a oeste, os portugueses foram dos principais construtores do mundo conemporâneo e chegaram a estar a montante da linha de saberes que abriram o mundo ao mundo. Esquecemo-nos disso, com frequência, deprimidos por comparação com os consumismos que nos chegam de fora, produções fúteis, condicionamentos de grandeza física, escalas tecnológicas e outras. Nada disso deve nortear o nosso comportamento, até porque petencemos, de facto, à Europa -- esta junção mitigada de vinte e sete nações -- centro de uma civilização que chegou bem longe no entendimento do ser humano, dos valores, direitos e deveres que o definem, prática social, avanço nas áreas de ponta do conhecimento. Estamos aí. E, além do mais, deixámos marcas sensíveis por todo o mundo, grandes países que falam a nossa língua e podem evoluir até espaços temporais de sobrevivência do próprio planeta. Dar exemplos é inútil. Falar dos heróis, das aventuras marítimas, das crises do século XX e de emigrações gloriosas, também pouco importa. Ou melhor: pouco importa quando nos desejamos focar num dos primeiros grandes pintores do século anterior, importante sem dúvida, pioneiro da arte moderna e das vanguardas igualmente, embora os poderes actuais das outras culturas o não tivessem descoberto à dimensão a que merecia, tanto mais que morreu novo e o seu país entrou em crises de regime, em ostracismos culturais. Os que menos se atemorizam com tais distorções da história, sabem que Amadeo deverá ser revisto, reconquistado e projectado no plano europeu, para não falar de outros. Porque o seu pioneirismo se situa efectivamente no vértice de uma revolução artística travada sobretudo a partir de França mas que hoje se distende, se reafirma e se contradiz no plano global (por muito perverso que este conceito possa vir a revelar-se).
Amadeo de Souza-Cardoso, cuja formação mais avançada decorreu em Paris, mas também nessa espécie de «exílio em casa» que o atingiu durante a Primeira Grande Guerra e que o haveria de recolher pela trágica epidemia, a pneumónica, que assolou o mundo na segunda década do século, mostra-se, a partir da maturidade mínima, capaz de seguir ou antecipar particularidades estruturais e conceptuais nas artes plásticas então a abrir-se em diversos caminhos. A «espátula» que Cézanne aplicava à geometrização ou nivelameno das formas, no próprio terreno da paisagem, isso levou Amadeo para as planificações das áreas pictóricas, entre configurações representativas e encenações bidimensionais do campo. A cor que pratica, dispara no espaço, utilizada com sabedoria entre os tons negros, concentrando toda a dinâmica interna do quadro. Tem forma. É espontânea, da larga escala à arrumação quase caseira de certos aglomerados figurativos. E, além disso, a tranformação foi mais longe, a outros pontos (como «A Cabeça Verde»), fronteiras do expressionismo e do surrealismo, premonições de alguns territórios cubistas, enre vários. Não estão lá as teorias, porque não teve tempo de as reescrever, mas estão as consequências antes mesmo das confirmações a jusante.
Seria bom que este homem fosse mais estudado. Qua a sua obra fosse divulgada e contextualizada por peças dos media, audio-visuais, interpretação tratadista. Não como hoje se faz para alguns autores engalanados a despropósito com livros imensos, catálogos e textos a triplicar, enviesando a história pelo ostracismo ideológico ou meramente preconceituoso que os mandantes dedicam a muitos outros. É que em vez de um Amadeo poderíamos ter vários -- nas artes plásticas, nas artes do tempo e do espaço, cinema, teatro, dança, controlando o efeito colonial nocivo (porque nem sempre o é) dos espectáculos megalónamos.
Rocha de Sousa

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