Anorexia é mais um dos vocábulos humilhantes envolvendo o nosso psiquismo manipulado à superfície das montras, vinda de longe e de perto, doença inicial que podemos colar ao aspecto daqueles manequins de plástico que servem para simular o prazer de vestir uma peça de roupa sem que o corpo, de fora, pareça rebentar de hematomas. A magreza é procurada a todo o custo. E os pacientes não comem ou vomitam o qe comem, o que não os impede de se olharem ao espelho, no qual se projecta um esqueleto de Treblinka ou se distorce uma caricatura da verticalidade do corpo humano. A massa muscular quase não existe, os ossos emergem sob a pele, e nada disso evita que tais fundamentalistas ainda sonhem, aqui e além, com volumes ainda a abater.
Os distúrbios produzidos pela readquirida imposião da escravatura têm hoje um glossário técnico, comercial e químico que faria inveja à mais andrajosa das civilizações. Veja-se como a Índia cresce à razão de 10% ao ano, o que é fenomenal e realiza riqueza social insofismável para uma parte da população, enquanto dois terços da massa demográfica tenha de viver com um euro por dia. Muitas das razões que determinam esta assimetria, em pleno crescimento da riqueza nacional, vieram do Ocidente e das grandes mecanizações do fabrico e do consumo.
Nas aulas de anatomia ligada às artes, entre padrões femininos gregos, romanos, e outros, as linhas perpendiculares que desciam virtualmente dos ombros da mulheres vinham cair na curvatura da anca, enquanto pelos seios se podia fazer passar, de mamilo a mamilo, o lado menor de um rectângulo ao alto, que cabia em baixo, em várias alturas, ainda dentro da silhueta do modelo. Conheci uma rapariga, mais ou menos com esse perfil anatómico, alta, clássica, com um corpo sem acentuações e de grande harmonia. Ela veio a candidatar-se a uma dessas famosas casas angariadoras de reféns da moda, procurando aceder à profissão de manequim. Quase nem a viram, porque de soslaio chegaram logo à pérfida conclusão de que tinha anca demais. Contudo, o patrão dos visionamentos acompanhou a rapariga à porta onde aproveitou no sentido de a convidar para jantar -- o que parece contraditório em função do diagnóstico debitado.
o código da aberração
Numa onda que foi crescendo a partir de França e da Itália, o poder das agências de angariação de modelos, abarrotando de candidatas, foram apertando o cerco à alucinadas meninas que aspiravam chegar ao sucesso das passerelles. Era gente sem informação científica e estética sobre a matéria, imaginando, na sua mente snob, o exemplo feminino sem ancas, sem peito ou peito tratado, ombros alinhados pela maior largura na horizontal que passa pelo púbis, mas tudo isso, sob contratos caninos, levados ao absurdo e frequentemente com mocinhas dotadas de um palminho de cara, ponto de interesse que era reelaborado pelo pessoal da maquilhagem. Começou tudo com o código dogmático das medidas 86-60-86, simetria que nada tem a ver com a estrutura do corpo feminino. Em suma, uma indúsria da cultura de massas, uma produtora de meninas anorécticas de difícil recuperação, gente com a morte anunciada algumas vezes, alucinada pelo padrão imposto, as pernas miseravelmente lineares e magras, que trocavam os pés no andar de mero treino, tanta coisa assim enviesada naquelas anatomias descarnadas.
As indústrias do consumo, quase sem o perceber, alinham em rotinas conceptuais insustentáveis, trabalhando alimentos absurdos, padrões de dieta inqualificáveis, manequins cuja vida, em certos casos mitificada por multidões alienadas, passa por uma dureza escrava. Tudo por uma sociedade artificializada nas necessidades e nos gostos, à beira de ter que regulamentar o caso da moda. Mas escrevo ao saber que o peso das raparigas passou a ser exigido nunca abaixo de certa marca e apesar de me sentir ainda impressionado com o caso (entre outros, certamente) da morte de uma modelo -- um corpo prematuramente cansado, corroído pela anorexia e pelos trinta e tal quilos que chegou a pesar nos últimos dias.
1 comentário:
Parece difícil de compreender uma coisa tão óbvia: a força imensa dos media na (des)educação das pessoas. O parêntesis aparece pq em Portugal só se faz notícia pela negativa, ao contrário do que seria desejável.
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