O velho queria saber se eu tinha sido sujeito a regimes de tortura. Queria saber, em particular, se contraira problemas de percepção, nomedamente a visual. «Que problemas, senhor doutor?» Ele estava sem paciência: «Ó homem, os habituais, distorção das formas, aranhas pequenas subindo lentamente pelas paredes, ruídos estranhos» Cuspi para o chão. «Aranhas nunca, nunca vi aranhas, nem a subir pelas paredes nem a correr pelo chão» O médico rabiscou no seu caderno de notas e na minha imensa ficha, um monte de cartões presos por duas argolas. O homem levantou o rosto e olhou-me com desconfiança, perguntando: «Mais nada». Encolhi os ombros:«Não, mais nada» Deixei a cabeça pender e vi os meus pobres sapatos, sujos, rotos, cambados. «Estou agora a pensar nas baratas, todo aquele pavilhão é imundo». Ele, ansioso: «Baratas? Que baratas? Onde estavam as baratas?» Coçei a cara, já chateado: «A baratas? Naturalmente que no chão» O velho de novo: «Tem a certeza?». Olhei outra vez para os sapatos, sentia os pés frios. «Eu pisava as baratas, esmagando-as com preciosismo, mas elas saíam vivas debaixo das solas. Porque é que as baratas se safam desta maneira?»
O médico, com os seus cabelos brancos escorridos, disse secamente e devagar:
«As baratas são imortais».
2 comentários:
Mundo paralelo! A realidade como prisma multifacetado. A visão depende do ponto de observação e da distância. No post anterior um prisma, neste o prisma contíguo. Os prismas são paradoxalmente diferentes em dimensão e forma, levando a uma dismorfopsia por incapacidade de processamento visual...
Como um zoom, recuamos e aproximamos a visão, aumentando o detalhe ou a ilusão, mas...as baratas continuam imortais, claro...
Até outro prisma....
Ah! Não lhe tinha ainda expressado o meu apreço, sobre a forma como as ilustrações nos contam a estórias contidas nos textos, e mais além, sempre. No anterior post,já assim era. Neste a imagem, está mais além, de mais além...as baratas é que nos esmagam com a sua imortalidade.
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