domingo, junho 25, 2006

TEMORES E VIGILÂNCIA


Erradamente, meteram-me na António Maria Cardoso e desataram a fazer-me perguntas idiotas sobre um tal Jerónimo. Era no tempo em que o governo zelava pelo emprego dos desprotegidos da inteligência, dos coxos, dos arrastadinhos, dos trapalhões - toda essa gente com vocação para contínuos, serventes, vigilantes. Também estive de pé dias seguidos, queriam saber vários nomes de gajos que eu nãp conhecia, porra de noites, porra de dias, ficava cego, acordavam-me batendo com um martelo no tampo da mesa. Deixei de perceber as coisas, a luz em volta. Então despejavam um balde de água fria sobre a minha cabeça ardente e eu só retomava o mundo das aparências pouco depois, rodeado de baratas que andavam pelo chão, montes de baratas sempre vivas mesmo depois de as pisar lentamente, com preciosismo.
Dali fui direitinho para o Júlio de Matos, instituição que conhecia bem. Fui encontrar por lá um arquitecto que já fora professor na Escola, dedicava-se agora à pintura. Pintava umas paisagens com galinhas, terrenos floridos, espaços verdes onde pousavam bonitas vivendas em «estilo português suave». Dois enfermeiros vieram buscar-me e eu fui assim, arrastado, até ao consultório de um médico velho, com os cabelos desalinhados mas pendidos. Perguntou-me se havia sofrido inquéritos dolorosos, o método da estátua, choques eléctricos. E ainda me perguntou se estava a ver bem, se não me debatia com o desfoque das figuras ou se tinha a percepção de pequenas aranhas trepando pelas paredes. «Aranhas não, aranhas nunca». O velho olhou-me com desconfiança e eu voltei a falar, ansioso: «Só vi baratas. Imensas baratas». E ele, de olhos muito abertos: «Onde?» Encolhi os ombros: «Naturalmente que no chão». O velho médico escreveu duas ou três palavras na ficha e disse depois: «Mais nada?» Olhei para os meus pés, os sapatos sujos e rotos. «Mais nada. Eu pisava as baratas, esmagando-as com preciosismo, mas elas saíam vivas debaixo das solas». Então o homem disse secamente, mas devagar:
«As baratas são imortais».
ilustração de Rocha de Sousa, trabalhada por computador.

2 comentários:

antonior disse...

É verdade! As baratas são imortais, porque só o ser humano é mortal. Apenas a consciência da morte nos confere a qualidade de ser mortal. E as baratas não são humanas...preto no branco e...ponto final!

Vim cá ter, através da Daniela "Naturalíssima", e em boa hora, pelos vistos.

Gostei de muito do que vi e li.
Uma saudação pelo ar que aqui se respira. Críticas com corpo e vísceras, quase até ao osso, bem nos fazem falta. A concordância pode ser um simples exercício...ou nem por isso.

naturalissima disse...

Não querendo despresar o conteúdo das palavras, gostava de cá deixar a minha apreciação em relação às fotografias e aos desenhos aqui colocados. São maravilhosos.

Passarei por cá paar ler mais novas.
Daniela