Matta ClarkPasso e fico, como o Universo.
Alberto Caeiro
O que fica dos passos, como o Universo, é a poeira sem contornos, nem cor, nem substância. São vidas forçadas a viagens entre Escolas e diferentes Cidades ou Aldeias, uma espécie de exílios somando os anos aos anos, entre vigílias nómadas e tímidas. Os professores portugueses têm, na base da sua utilização pedagógica, esta errância que os divide, os separa, os torna intérpretes da tão anunciada precariedade do trabalho outrora consistente e sujeito a normas de progressão num quadro de carreira, numa perspectiva consolidada de futuro. Esse estatuto, cuja base de sustentação, além das licenciaturas, dos doutoramentos, das agregações, das ciências da educação, era conquistado devagar e o mais seguramente possível. As famílias constituíam, para muitos docentes, lugares sólidos de ancoragem ou o porto provisório de uma vontade colectiva de ensinar mais perto das origens. Uma coisa para uma ou duas décadas, permitindo, em todo o caso, que os protagonistas do ensino se ligassem à terra, à sua história, a par das pessoas e dos seus costumes nos diversos enquadramentos distritais. Lisboa atraía os que mais ambicionavam, entre várias coisas da sedução urbana, entre a frivolidade e a cultura, a vida cosmopolita (ou a sua simulação) - porque, à medida que a colonização se alargava em vários sentidos, os prédios urbanos tentavam sugerir certa qualidade de vida, tinham lareira não se sabe porquê, várias casas de banho, fogões eléctricos, porta-lixos, e porteiros ou porteiras e guardas nocturnos abafados por aqui e por ali, portadores de chaves de portas, garagens e carros. O rumor inquietante das máquinas que se aproximavam. ao ritmo das migrações, era já o aviltamento da terra, o princípio dos chamamentos chantagistas, cortando sem valor de ciência os campos de uma agricultura onde havia ainda uma sedentarização produtiva da ordem dos 30% da população nacional.
Não quero, com estas imagens, fazer a apologia da apatia cinzenta dos tempos de Salazar, mas apontar desde já os indícios do que deveria hoje ter evoluído para grandes patamares de consistência nos encontros e nos projectos da uma sedentarização com boa ordenação do território, na racionalidade da distribuição dos meios e unidades produtivas.
Em todo o caso, a promoção de um professor à condição mais alta era penosa, obrigava ao rigor do estudo pedagógico sem projecção prática e ao aprofundamento das metodologias, das técnicas inseridas nos programas, a par de um significativo quadro de orientações profissionalizantes. Havia provas decisivas, como a do Exame de Estado, lição que parecia anteceder o doutoramento e ter solenidades idênticas. Um Curso de Pedagógicas, inspecções, candidaturas e vagas que começavam a tornar-se exíguas - a marca do tempo avançando com as máquinas, carros de combate , como num cerco à cidade, peças indizíveis prontas para ajudar a erguer prédios de quatro andares, cimento, tijolo, casinhas minúsculas, cozinhas apertadas, estendais para secar a roupa, nos subúrbios, à portuguesa, todo o terreno em volta configurado por mato, algumas árvores secas, barracas de madeira e zinco envolvendo o círculo anterior do perímetro citadino, num sonho logo sujo de lixo e fezes, como os arredores de muitas cidades ou povoações médias do terceiro mundo.
Depois do 25 de Abril de 74, entre convulsões, equívocos, segredos e fracturas, quase uma guerra civil nas barbas da outra, a colonial, cento e cinquenta mil homens em três frentes de combate, um sinal de verdadeiro confronto veio dar força política a quadros mais moderados, foi possível instituir a Constituinte, gerindo o país, nessa ravina do sonho, através de governos provisórios de quase sempre triste memória. E é desta dinâmica desencontrada, servida por máquinas administrativas que sempre haviam dado suporte à ditadura, numa rede de postos, guarnições mlitares, polícia política, ministérios pomposos e autoritários, que irá nascer a democracia, rangendo os dentes, sofrendo ainda os calafrios produzidos pelas forças em presença. A Escola, realidade que fora tratada, por razões sociais e não técnicas, segundo estratos de aplicação diversa consoante os planos profissionais, chegara a obter valores de aproveitamento e de qualificação acima da média no período que sucedeu à fase inicial da instauração republicana. Das extintas Escolas Técnicas e Comerciais saíram gerações de profissionais a quem o regime validara acesso às áreas próprias, quer na linha das indústrias embrionárias, quer nos equipamentos comerciais ou outros, sobretudo no sector bancário. Por volta da década de 60, muitos directores dessas Escolas eram escolhidos entre os artistas diplomados pelas Belas-Artes, tendo em conta o seu valor criativo e intelectual, a par de uma assinalável abertura aos problemas nucleares das demais disciplinas. Há todo um estudo a fazer sobre esta via de ensino, reformas, apetrechamentos e reapetrechamentos, a descoberta de campos de pesquisa com incidente aplicação social.
Ao lado de tais instituições, mas entretanto monolíticos, formais, destituídos de liberdade criadora e geridos (frequentemente) por homens de letras, reitores hirtos, capazes de quadricular toda a realidade pedagógica e de convívio sob sua regência, havia então os famosos liceus - máquinas densas e inúteis, preparando os alunos para acederem aos caminhos da Universidade e, mais tarde, constituirem eventualmente a maior parte das nossas elites.
Quando estalou a revolução dos capitães acabara praticamente de se desenhar no papel uma reforma geral do Sistema Educativo, da responsabilidade do Prof. Veiga Simão, pela qual se criavam mais universidades, se concentrava a formação secundária num só eixo unificador (o dos liceus) e se começava a esbater, por completo desonhecimento da sua identidade e prioridade cultural, as disciplinas de índole artística, tanto no ramo unificado que fingia igualizar toda a gente, como a nível superior, onde foi necessário gastar cerca de vinte anos para integrar as Escolas Superiores de Belas-Artes, na condição de Faculdades, em Universidades de Lisboa e Porto. Tudo isso estava largamente adiantado em Espanha, com as suas Faculdades de Belas-Artes e o entendimento delas num quadro plural de prestações em ordem às próprias Universidades ou à comunidade.
Portugal cava as suas feridas: e se outrora podia resignar-se a umas centenas de alunos habilitados que entravam para o Ensino Superior Universitário, ao desatar os diques, sem a rolha das diferenças sociais, justamente quando o ensino se tornava gratuito por ordem da Constitição, viu-se a braços com dezenas de milhares de candidatos, além da vaga de cerca de quatrocentos mil inscritos nos planos dos ensninos básico e secundário. Todos os equilíbrios se estilhaçaram, apesar de muitos méritos que foram deslizando na corrente agitada durante anos e contra a pouca vontade política dos governos já constitucionais.
Em síntese: os problemas logísticos aumentavam de dia para dia; o pessoal auxiliar, desclassificado, perdia-se em exigências de deslocação e de função; os equipamentos de natureza didáctica, escassos, mal se completavam com meia dúzia de projectores de diapositivos por aqui e por ali; as instalações novas envelheciam à nascença, sem ginásios, sem anfiteatros, sem laboratórios; e os professores, recrutados como numa urgência de guerra, com ou sem habilitações, eram lançados por todo o espaço nacional, ano a ano, sem casa, sem referências, ganhando e perdendo os afectos da profissão, impedidos de dilatar (em comunidade) a sua formação e os cuidados sobre a realidade pedagógica da qual se apagava, de forma displicente, toda a poética. Ora um professor é uma chave essencial para a manutenção dos princípios da vontade criadora, da prospecção e investigação, da disciplina e sentido cívico, pessoas de memória para a memória, para serem recordadas e não perdidas após uns meses de conhecimento e partilha de experiências. Há contudo quem os considere caixeiros viajantes, revividos a partir da obra de Arthur Miller, ou os personagens à espera de nada, como no Godot, de Beckett.
Em suma:
É urgente encarar a formação dos professores, mas não como os que desabrocham naquelas escolinhas que os salpicam de condimentos q.b. e os mandam, sem mais, para a condição de docentes efectivos aqui e além. Os verdadeiros agentes do ensino precisam de que lhes facilitem os meios de trabalho através, por exemplo, da Universidade Aberta ou da Internet, incluindo bibliografia adequada às respectivas problemáticas. Não lhes peçam mais precariedade, mais nomadismo, mais exames, mais avaliações pretensamente de vanguarda. A melhor forma que já se esboçou no nosso país a este respeito, e que precisava de configurações actualizadoras quando a deitaram para o lixo, correspondeu à profissionalização em exercício. Num certo número de escolas espalhadas pelo país e bem apetrechadas quanto aos meios tecnológicos e outros, incluindo especialistas em comissão de serviço para assessorar outros docentes «rotativos», o professor começava por reaprender o que aprendera e sobretudo aprendia fazendo aprender. Além da sua própria iniciativa, documentada no fim de dois anos, algumas linhas normativas e identificadoras seriam avançadas consoante as regiões e trabalhadas com orientações e avaliações informais por orientadores e tutores, os quais circulariam por determinadas instituições e teriam a seu cargo a observação e o aconselhamento de certo número de alunos em profissionalização. Este trabalho, sem pompa nem apertos de classsificação, haveria, em todo o caso, de obter certificados finais discutidos pelo docente, pelos orientadores e tutores. Toda a mecânica destas tarefas seria naturalmente controlada por lei e calendarizada por forma a que os orientadores e tutores pudessem trabalhar a sós ou em conjunto com o candidato à profissionalização. Da área das ciências humanas, onde poderia haver simpósios duas vezes por ano, seriam recrutados coordenadores de actividade geral na respectiva zona, prontos a respirar segundo os objectivos da educação e as mudanças estratégicas da ciscunstancialiade nacional, entre outros aspectos a ponderar.
Os professores teriam o direito de escolher uma fixação, um vínculo de tempo indeterminado na Escola, aí ensinariam sem o sobressalto do nomadismo, a par daqueles que seguiriam itinerários trienais até uma certa idade. Aos que desajassem fixar-se no interior, as autarquias providenciariam planos de alojamento e o Estado completaria tais miragens com subsídio de isolamento, habitação e formação.
Quando isto acontecer (a par de normas estruturais de natureza corrente e realidades que têm de ser ponderadas), a qualidade do ensino terá de melhorar e os factos assim gerados poderão cativar os alunos relativamente à sua segunda casa - a Escola.
Do Ensino Superior Universitário é preciso falar com mais tempo e outra disponibilidade dos meus leitores. Mas os acessos terão de mudar por completo, determinados por cada Escola com auxílios a convocar, e a carreira docente, como decorre agora, deverá ser implodida muito a sério, pois as cerimónias de mestrados, pós-graduações, cursos para doutoramento, doutoramento, agregações, tudo isso só deixa na vida dos professores e alunos uma forma babélica de esforço obstruído, sem verdadeiro entrosamento, sem investigação, sem tempo de sobejo de tanto ritual para a verdadeira dedicação ao trabalho com os alunos. E a verdade é que estes podiam fazer parte de períodos de aprofundamento temático, com o professor doutorando, partilhando de uma verdadeira dedicação aos valores do saber. Há outros modos de percorrer a carreira, daquele ponto à abertrura das instituições. O resto, o que tem persistido, vem dos poderes arcaicos, pelo menos entre o feudalismo e Napoleão.