Um sobrevivente de Auschwitz regozijou-se, num sorriso melancólico, com a morte de Saddam Hussein. Fizeram-lhe ver que, nas actuais circunstâncias, era impossível estabelecer comparações com Nuremberga, por exemplo. O velho judeu encolheu os ombros e não falou mais durante toda a tarde, acomodado a um canto da sala daquele debate semi-institucional.
Sinto-me como aquele velho, embora não seja capaz de assumir a silenciosa dignidade dele ao escutar jornalistas qualificados esgrimirem sobre questões como a pena de morte, a prisão perpétua, o vil enforcamento de um homem (tirano embora) nos últimos instantes em que aparelhavam o equipamento do acto final. Não sou capaz porque a mancha de hipocrisia em que assentam os nossos conceitos, e permanece em geral escondida por protocolos e etiquetas, explode um pouco por toda a parte, de súbito muita gente civilizada falando de direito, de oportunidade, de propaganda, de vingança, de moral, de respeito humano, de mera política legitimando-se no caos -- tudo isso como se o nosso rosto tivesse de cobrir-se de vergonha com o acto cuja origem, no fundo, se ligava a anteriores decisões de Busch e de um tribunal titubeante (além de encurralado) na frente da guerra do Iraque, dos interesses jogados sobre a mesa pobre de populações mal-amadas. O que me faz alinhar aqui estas palavras, e apesar de também de discordar da pena de morte, é a pulverização de uma causa que, perante todos os mal entendidos da história e da história dos déspotas, só se pode abordar sem emocionalidades patéticas como as debitadas em torno (ou a propósito) da condenação executada de Saddam. A teoria política da justiça, a este nível, tem de fundamentar-se no plano científico, na medida ética e moral, em sentido perfeitamente ontológico e não na babugem das raivas menores, na obscuridade de um homem que praticou crimes contra a humanidade e poderia ser levado para o pequeno jardim prisional, destinando-o a regar as plantas durante a vida, até à morte. A demagogia que se espalhou pela comunicação social, os pruridos de políticos ingénuos ou manhosos, os culpados julgando a culpa, tudo isso me conduziu à indignação.
Continuando imóvel durante três horas, pelo menos, o velho sobrevivente de Auschwitz talvez se lembre de coisas mais próximas, os militares provocando ou sancionando a morte, em meses, de oitocentos mil africanos, entre países ´contíguos. Talvez pense nos gaseificados, na tortura ainda em uso, ou no enforcamento, na cadeira eléctrica, na injecção letal, que se praticam nos Estados Unidos. A beleza funconal da guilhotina. A morte pela fome. Os efeitos, assim, da ira irracional dos homens, que fazem despertar a habitual ira de Deus. Como deveriam ter sito tratados (se o não fizessem eles mesmos) Hitler e Staline? O julgamento de Nuremberga serviu para quê? Para exercer a justiça, tomar decisões dedicadas à memória futura? Há crimes graves, políticos ou outros, por todo o mundo, a maior parte deles impunes. Não façamos da nossa culpa, por inteiro, mero espelho dos verdadeiros culpados.
Rocha de Sousa ! Jan.07
1 comentário:
Quantas mortes deverão ser imputadas a W.Bush?
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