sexta-feira, janeiro 19, 2007

A JUSTIÇA É CEGA


Há muitos anos, estava eu iniciando alguma vida profissional, fui chamado ao Ministério da Justiça, lugar mítico do qual pouco sabia, com indicação de um Secretário de Estado cuja ideia de ramo perdi por completo. Lá atei a gravata ao pescoço, sobre uma camisa nova, e fui. Quando falei com o porteiro, dizendo-lha ao que ía, logo me encaminhou para um gabinete de espera. E disse: «o senhor doutor vem já.» O ambiente era um pouco carregado, a luz muito cortada pelas cortinas, e o mobiliário preto, decorado por retorcidos. De facto não esperei muito e o senhor, cuja graduação tanto podia ser de Secretário de Estado ou de Ministro, pois os meus ouvidos fecharam-se ao som articulado das palavras de apresentação, convidou-me para nos sentarmos. E passou a explicar-se: «O Ministério da Justiça pretende encomendar-lhe o projecto de uma tapeçaria para a grande sala do Palácio da Justiça de Moimenta da Beira, que estará em breve em acabamentos. Soubemos do seu trabalho pedagógico e profissional neste domínio e queremos alargar o leque dos artistas a convidar». Calou-se e ficou a olhar para mim, como se esperasse uma resposta com tão poucas premissas. Disse-lhe que me sentia honrado com a escolha, mas precisava saber contornos do projecto, onde seria manufacturado, se havia ou não, para além da natural premissa de integração, recomendações técnicas, temáticas ou outras. E ele, sorrindo: «Então aceita?» Eu respondi que sim, que em princípio a encomenda me agradava. E ele, antes que eu voltasse à lenga-lenga das condições: «Óptimo. A tapeçaria terá três por quatro metros, será tecida na Manufactura de Portalegre, incluindo a ampliação para papel de tear. O Ministério pagar-lhe-á pelo «cartão» com todas as indicações necessárias entre cem ou cento e vinte contos.» Resmugando um pouco à partida, acabei por aceitar, considerando que a Manufactura ou o Ministério me fornecessem as coordenadas habituais. «Com certeza -- disse ele -- mas tem de respeitar apenas uma condição. A sua linha estética é a que quiser, com ou sem figuras, com ou sem simbologias recorrentes. No entanto, e no caso de desejar representar a figura simbólica da Justiça, o Ministério não aceita qualquer entidade com os olhos vendados e adereços de espada e balança. Entemde a questão?» E eu, estupefacto: «Com certeza.» Antes de terminar, já entre portas, o homem entendeu por bem esclarecer-me sobre as exigências do Ministério: «Este Ministério é de facto da Justiça. Não encontramos razões, na época actual, para apresentar a Justiça como cega (de olhos vendados) e com uma balança e uma espada, indicações de dividir laminarmente para distribuir valores ou de os ter de pesar como se os actos humanos o pudessem ser». Agradeci-lhe a explicalção e fui à vida. Em Moimenta da Beira pode ver-se o resultado. De facto a Justiça não pode julgar sem ver, porque ver é indagar, é julgar o real, enquanto o fio da espada e a balança pouco se ajustam a uma sentença ponderada numa sala e escrita à secretária. Meus amigos, os que me estejam a ler sem vendas nos olhos, esta hitória é verdadeira mas a concepção daquele Secretário ou Ministro é hoje falsa. A Justiça, entre nós, mostra índices de formação e formulação de sentenças por vezes aterradoras. Estamos neste momento a assistir à tentativa, judical, de se retirar a uma família de acolhimento e adopção uma criança que a mãe biológica lhes entregou e pediu que cuidassem, o que fizeram até ao presente, durante cinco anos. O pai biológico, que só apareceu verdadeiramente um ano depois da filha nascer, é chamado a assumir o seu papel de sangue, vivendo a milhas de qualquer cenário capaz. A protecção dos pais biológicos chega a ter aspectos ainda mais absurdos do que este, é sagrada e mítica, a criança acaba sempre em segundo plano, quando devia ser, antes de tudo, a primeira causa a avaliar. O país indigna-se: porque o pai adoptivo foi preso por seis anos e a mãe adoptiva fugiu para parte incerta, a fim de preservar a menina de uma verdadeira catástrofe. E o povo indigna-se porque percebe que o pai adoptivo se deixa prender com honra e na defesa dos valores em causa, protegendo a filha, tanto como a mulher que se oculta da total inconsistência desta decisão do tribunal. Um tribunal que obviamente exerceu uma justiça cega e não sabe nada de ninguém. Um tribunal e que usa a espada para dividir cegamente. Um tribunal que julga poder evocar a lei numa situação que é ontológica e não circunstancial.

1 comentário:

jawaa disse...

Parece que há aí outros contornos ainda não muito esclarecidos, mas está fora de dúvida que a questão central tem de ser a criança e ela não pode, por decreto, ser retirada aos seus pais - que o são efectivamente! - para ser entregue a um qualquer desconhecido nunca viu.
Acrescento: menos ainda a uma qualquer instituição que decerto a marcaria para todo o sempre.